A incrível estória mal contada da muamba presidencial
Ana d’Angelo*
Numa foto, aparece num salão governamental, na Arábia Saudita, o então ministro das Minas e Energia do governo Bolsonaro, o almirante da Marinha Bento Albuquerque. Era a solenidade de encerramento da reunião bilateral entre os dois países que ocorreu entre 22 e 25 de outubro de 2021. Ele está ao lado do ministro de Energia saudita, o príncipe Abduzlaziz bin Salman, de quem recebe uma estatueta com um cavalinho cravado num pequeno adorno, ambos aparentemente de ouro. O equino está imponente num pedestal de madeira enfeitado com pequenos detalhes dourados.
Um dia depois, lá estava o mesmo cavalinho com as pernas fraturadas separado da base que o sustentava e retido na alfândega da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos. Estava dentro de uma mochila do tenente da Marinha Marcos André dos Santos Soeiro, outro assessor direto do então ministro Bento Albuquerque.
Como já notório, fato revelado pelos repórteres Adriana Fernandes e André Borges do Estadão, na mochila do militar também estava um estojo contendo um colar, dois brincos, um anel e um relógio. Todos cravejados de diamantes da famosa grife suíça Chopard, avaliados pela alfândega de Guarulhos em cerca de 3 milhões de euros, ou atuais R$ 16 milhões.
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O curioso é o deslumbrante conjunto de brilhantes ofuscantes, em geral adquirido por milionários e celebridades muitas endinheiradas, não estar acompanhado do bracelete ou pulseira no mesmo design único do colar, dos brincos e do anel. Não soa muito crível que o príncipe da Arábia Saudita adquirisse e desse de presente à Michelle um conjunto de adornos femininos de design bem definido acompanhado de um relógio de modelo padrão, semelhante até aos modelos masculinos, ainda que cravejado de diamantes. Fica mais uma dúvida nesse tanto de versões mal-ajambradas dos envolvidos: quem montou e comprou o conjunto?
PublicidadeA foto em que Bento Albuquerque recebe a estatueta do cavalinho parece indicar que o presente era para ele. Não seria o primeiro entre colegas de mesma hierarquia e outros servidores de segundo escalão a ganhar esses mimos mais caros dos árabes.
O almirante da Marinha jura até hoje que não sabia que eram joias, muito menos de diamantes, o que estava na caixa que seu assessor André Soueiro tentou passar ilegalmente pelo raio-x do aeroporto junto com o cavalinho. Que aqueles brilhantes seriam um presente para a primeira-dama Michelle Bolsonaro e foram entregues, na última hora, por representante do governo saudita no hotel onde estava hospedada a comitiva brasileira, na capital Riad.
Junto também teria sido entregue uma outra caixa destinada ao presidente Bolsonaro. Esta passou pelo raio-x da alfândega sem declaração da sua existência e sem que a Receita interceptasse, no meio das malas de outro membro da comitiva que o então ministro disse não saber quem foi.
Pelas declarações dadas ao Estadão, Bento Albuquerque não teve nenhuma curiosidade de saber se não estava sendo usado para transportar algum material ilícito para o Brasil. Ou que tomasse a previsível e esperada precaução para não passar qualquer mercadoria que violasse o limite aduaneiro de isenção de imposto (até US$ 1.000).
Em entrevista ao Estadão na última sexta-feira (3), afirmou que, assim que chegou a Brasília, abriu o segundo estojo de joias, destinado a Bolsonaro. O enrosco que já estava cheirando muito mal ficou pior. “Esses pacotes foram distribuídos nas malas. Uma ficou com o Marco Soeiro, a outra eu não sei com qual membro da comitiva”.
Ou seja, dois assessores de Bento Albuquerque, funcionários investidos de função pública, estavam transportando joias valiosas passando pela fila da alfândega de quem não tinha nada a declarar acima de US$ 1.000 e ninguém sabia de nada do conteúdo das caixas.
Conforme divulgado pelos repórteres da Folha de S. Paulo Julio Wiziack e Marcelo Rocha, a segunda caixa contém um relógio, duas abotoaduras, uma caneta e uma espécie de rosário, tudo também da cara marca Chopard. Ela fez um curioso trajeto do prédio do Ministério das Minas e Energia para o Palácio do Planalto quase que no apagar das luzes do governo Bolsonaro. É uma distância curta, em torno de mil metros. Mas o tempo que levou para percorrer esse pequeno trajeto não tem explicação razoável: um ano!
Há um recibo, divulgado pela Folha, assinado pelo então assessor especial do ministro das Minas Energia, Antonio Carlos Ramos de Barros Mello, encaminhando as joias ao Gabinete-Adjunto de Documentação Histórica do Palácio do Planalto. Ele também fazia parte da comitiva brasileira que foi à Arábia Saudita em outubro de 2021. O encaminhamento um ano depois das peças ao destinatário não tem o condão de apagar um possível crime de peculato configurado, apenas atenua a pena. O governo Lula está devendo informação sobre onde estão essas joias atualmente.
Mas tem outro detalhe capcioso nessa outra estorinha mal contada. O envio das peças oficialmente ao Planalto ocorreu em 29 de novembro de 2022, depois de seis das oito tentativas do gabinete do presidente Bolsonaro para tentar reaver as joias de diamantes retidas em Guarulhos, sem sucesso, antes que seu mandato acabasse.
Só delação premiada salva
Até agora, não há provas de que o colar, os brincos e relógio cravejados de diamantes e a segunda caixa de joias foram presentes de fato do governo saudita. Essas duas caixas não foram entregues pessoalmente pelo príncipe saudita nem mesmo no último encontro com a comitiva brasileira. Só o cavalinho.
O que existe por enquanto são apenas as declarações de ex-assessores e de ex-ministro e do próprio gabinete presidencial de Bolsonaro, o qual também entrou diretamente no circuito para reaver da regional da Receita Federal em Guarulhos os brilhantes de milhões a dois dias do fim do mandato.
Sem origem comprovada, as condutas podem se enquadrar em crimes de descaminho e de lavagem de dinheiro. Se confirmado ter sido presente do Estado saudita, seria tentativa de peculato – desvio de bem pertencente ao acervo público no caso da primeira caixa e peculato consumado em relação à segunda caixa, além dos atos de improbidade processados na esfera cível. No caso, o peculato (crime próprio de funcionário público) se consuma assim que o agente dá ao objeto público destinação diversa do previsto. A obtenção do proveito próprio ou alheio não é requisito para a consumação do crime.
Diante de tanta historinha mal contada desde que os servidores da Receita apreenderam as joias de R$ 16 milhões em outubro de 2021, quem garante que as peças da segunda caixa que seriam para o presidente Jair Bolsonaro não estavam com outras pessoas e em outro lugar entre o final de outubro de 2021 e de novembro de 2022?
Por que o assessor de gabinete do Ministério das Minas e Energia, Antônio Carlos Mello, assumiu essa bucha ao assinar já no final do governo Bolsonaro o ofício de envio da caixa de joias ao Planalto? Afinal, quem, já no Brasil, entregou essa caixa ao então ministro Beto Albuquerque que a abriu em Brasília? Este disse ao Estadão que não se lembra qual da comitiva trouxe essa outra leva de joias de forma irregular. Foi Mello? Se não foi nenhum dos dois, quem da comitiva conseguiu passar pelo controle da Receita sem ser interceptado com bens que precisavam ser declarados?
À Folha, o ex-assessor justificou o encaminhamento tardio alegando que a pasta não sabia qual era o procedimento correto. Também está difícil de engolir essa. Há vários canais no ministério e em outros órgãos de fiscalização para dar informações, inclusive a consultoria jurídica da própria pasta, onde atuam procuradores federais vinculados à Advocacia-Geral da União.
Como nesse escândalo estão pelo menos dois militares, melhor seria que pelo menos um deles fizesse delação premiada e contasse toda a verdade dos fatos. Livra-se das possíveis penas pelos atos ilegais e pelo menos pode salvar um pouco do que ainda resta da imagem das Forças Armadas, depois de tanta lambança no governo Bolsonaro que alguns de seus membros promoveram durante quatro anos.
*Jornalista e advogada