Muitas dúvidas ainda pairam sobre a tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de liberar a entrada no Brasil de um conjunto de diamantes avaliado em R$ 16,5 milhões sem ter de pagar o imposto devido à União. As joias, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, foram enviadas como um presente do governo da Arábia Saudita para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e ficaram retidas na alfândega do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, vai acionar a Polícia Federal para apurar a história, que envolve também o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e um assessor dele, incumbido pelo chefe de entrar com um colar, anel, relógio e um par de brincos de diamante em uma mochila. Marcos André Soeiro foi flagrado depois de ser parado na alfândega, onde havia informado que não tinha nada a declarar. Pela legislação brasileira, o máximo que se pode trazer do exterior sem prestar declaração é o equivalente a US$ 1 mil.
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O episódio ocorreu após Bento Albuquerque e comitiva voltarem de uma visita ao Oriente Médio em outubro de 2021. Até o seu antepenúltimo dia de governo, Bolsonaro tentou quatro vezes liberar as joias da Receita Federal. Mas, se era para a primeira-dama, por que o mimo milionário não foi incorporado ao acervo da União? Nesse caso, não haveria cobrança de imposto.
Essa é apenas uma das perguntas que serão respondidas pelas investigações. Outras precisam ser esclarecidas:
> Quem deu o presente? Por que razão?
> Qual a participação do então ministro de Minas e Energia no caso?
Publicidade> Por que as joias não foram entregues pessoalmente a Michelle em uma viagem do então presidente ao país e, sim, enviada por meio de um auxiliar de Bolsonaro?
> Por que as joias foram trazidas em uma mochila de um assessor do ministro?
> Por que o governo brasileiro não declarou, previamente, que os diamantes eram um presente dado à primeira-dama?
> Michelle pretendia guardar para si um presente dado à figura da primeira-dama do Brasil?
Após a revelação do caso, Bento Albuquerque mudou a versão que havia dado ao Estadão. Disse ao Globo, logo depois, que as joias “foram devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro, de acordo com a legislação nacional e o código de conduta da administração pública”.
> Se isso ocorreu, por que o presente foi e continua apreendido na Receita Federal?
A reação de Michelle
Michelle Bolsonaro ironizou, nas redes sociais, a revelação de que era a destinatária das joias. “Quer dizer que, ‘eu tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória”, publicou Michelle nos stories do Instagram.
> Se a primeira-dama não sabia, alguém ocultou dela o presente? Quem teria sonegado a informação a ela?
> Qual o grau de envolvimento de Bolsonaro no episódio?
Segundo o Estadão, o ex-presidente tentou ao menos quatro vezes liberar as joias.
> O ex-presidente exorbitou de suas funções? Ameaçou funcionários da Receita, servidores de carreira do Estado brasileiro?
> Bolsonaro pretendia que o presente ficasse com a primeira-dama ou com ele mesmo?
Almoço e negócio
Essas são algumas das dúvidas às quais se somam outras duas coincidências:
1. No dia 25 de outubro de 2021, quando Bento Albuquerque embarcava em Riad, capital do país, de volta ao Brasil com as joias destinadas à primeira-dama, Bolsonaro fazia uma visita animada à Embaixada da Arábia Saudita em Brasília. O evento, embora registrado no Flickr do Planalto, não constava da agenda pública do presidente naquela data.
Segundo o colunista Guga Chacra, especialista em política internacional da GloboNews e do jornal O Globo, o encontro foi para celebrar os 53 anos das relações entre os dois países. Mas outros temas foram tratados. Por exemplo, o presidente brasileiro teria cobrado os investimentos de US$ 10 bilhões no Brasil que os sauditas prometeram e nunca cumpriram.
> Qual foi o teor das conversas? Bolsonaro foi informado, na ocasião, sobre as joias e que elas estavam a caminho?
2. Menos de um mês após o presente chegar ao Brasil, a Petrobras concluiu a venda da refinaria Landulpho Alves (RLAM), em São Francisco do Conde (BA), para o fundo árabe Mubadala Capital pelo valor de US$ 1,8 bilhão (R$ 10,1 bilhões em valores à época). Segundo estimativa do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o valor de mercado da refinaria girava entre R$ 17 bilhões e R$ 21 bilhões, conforme apontou o ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Paulo Pimenta. O negócio foi concluído em 30 de novembro de 2021, uma semana após Bolsonaro voltar de viagem ao Oriente Médio.
> Há alguma relação entre a transação com o fundo internacional de investimentos, baseado nos Emirados Árabes, com o presente que teria sido dado pelo governo saudita à primeira-dama?
Pressão por liberação
Segundo o Estadão, em 29 de dezembro do ano passado, um dia antes de Bolsonaro viajar para os Estados Unidos para não passar a faixa presidencial a Lula, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, então chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, chegou ao Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, com o objetivo de reaver o conjunto com colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes.
O militar viajou para “atender demandas” de Bolsonaro, conforme consta na solicitação de voo da Força Aérea Brasileira (FAB) à qual o Estadão teve acesso. “Não pode ter nada do (governo) antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”, argumentou o funcionário ao tentar convencer os fiscais alfandegários, relata o jornal. Ele não convenceu os servidores públicos, que mantiveram os bens apreendidos.
Na véspera, o então presidente havia enviado um ofício à Receita comunicando a viagem do subalterno e cobrando a devolução das joias. Antes, ele já havia mobilizado três ministérios para recuperar o presente milionário dado pelos sauditas.
Em novembro de 2021, de acordo com o Estadão, o Ministério das Relações Exteriores pediu à Receita que tomasse as “providências necessárias para liberação dos bens retidos”, mas o órgão fiscal rejeitou o pedido, alegando que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos. Depois, a própria chefia do fisco tentou liberar o material, mas os servidores do órgão não cederam à pressão.
> Se o mimo seria incorporado ao Estado brasileiro, como alega Bento Albuquerque, não haveria cobrança do imposto nem da multa. Então, por que Bolsonaro não teve sucesso em sua empreitada?
Dois irmãos
A relação entre Bolsonaro e o governo da Arábia Saudita, uma das ditaduras mais extremistas do planeta, era próxima desde o início de sua gestão Em outubro de 2019, o então presidente brasileiro participou de uma conferência conhecida como “Davos no Deserto”, em Riad. Na ocasião, o brasileiro disse ter “certa afinidade” com o líder saudita, o príncipe Mohammed bin Salman, acusado de graves violações de direitos humanos.
“O Brasil já deu certo. E a aproximação com os senhores, em especial, aqui, a Arábia Saudita… A forma como o príncipe herdeiro tem me tratado, e eu também no tocante a ele. Como se fôssemos velhos conhecidos ou até mesmo irmãos. Isso me orgulha”, declarou Bolsonaro.
Relatório produzido pelo governo dos Estados Unidos em 2021 apontou Salman como responsável pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, na Turquia. Segundo o documento, ele aprovou a realização de uma operação em Istambul para capturar ou matar o jornalista na embaixada saudita.
As investigações da Polícia Federal poderão apontar qual era de fato a relação entre Bolsonaro e a ditadura saudita. As bancadas do PT e do Psol já anunciaram que vão acionar a Procuradoria-Geral da República para investigar o caso, que se soma à farta lista de problemas enfrentados por Bolsonaro desde a derrota eleitoral de 2022.