O primeiro turno da campanha presidencial se aproxima e parte significativa da checagem de informações realizada nos últimos meses girou em torno das propostas e programas de governo apresentados pelos candidatos/as à Presidência. “Dá pra fazer?”, questionaram algumas iniciativas de fact-checking vinculadas a grandes meios de comunicação. A relevância de um debate aprofundado sobre os programas de governo na imprensa é indiscutível. Porém, várias dessas verificações apontaram para o sentido oposto.
Com destaques questionáveis, disparidades no aprofundamento dos temas e até a normalização de discursos falaciosos, muitas checagens levaram à simplificação de debates complexos e tiveram sua realização conduzida, na prática, pelos interesses das grandes empresas de comunicação promotoras do fact-checking.
O primeiro elemento que chama a atenção nessa leitura crítica é a seleção dos conteúdos a serem verificados e o aprofundamento dado à análise, num quadro de grande diversidade de forma e densidade dos programas de governo dos candidatos/as à Presidência. Enquanto alguns foram divulgados como apresentação de slides, outros são documentos com mais de 200 páginas; enquanto alguns apresentam análises dos problemas, outros apenas pontuam ações e propostas brevemente. Muitas das verificações gerais dos programas e das propostas desconsideraram essa diversidade e criaram prioridades conforme os interesses dos checadores.
Leia também
O projeto “Fato ou Fake”, do Grupo Globo, por exemplo, fez uma verificação de “pontos dos programas de governo” dos presidenciáveis. A baixa qualidade da checagem das informações fica evidente no tratamento de uma das propostas do programa do candidato Bolsonaro (PSL), que afirma que “o número de homicídios no Brasil passou a crescer de forma consistente a partir do 1º Foro de SP no início dos anos 1990”. A análise realizada pelo Grupo Globo não classifica a informação como falsa (“Fake”), mas sob a denominação “Não é bem assim”, e menciona apenas dados anuais de violência, questionando se o início da alta de homicídios teria sido mesmo em 1990.
Muito além do número de homicídios, a questão a se analisar certamente não era essa, e sim a claramente falsa causalidade dos dois eventos — o início de encontros de debate entre partidos políticos com o aumento dos homicídios no país. Na tentativa de associar a violência com o campo político da esquerda e o risível superdimensionamento do papel do Foro de São Paulo na articulação de assuntos nacionais e internacionais, a desinformação foi gerada não apenas pelo programa de Bolsonaro, mas também pelo Grupo Globo. Ao aceitar, por omissão, a premissa e a relação causa-e-efeito apresentada no programa do PSL, a checagem da empresa ajudou a legitimar o discurso falacioso sobre o papel desse evento na política brasileira. Para qualificar o debate público, seria necessário apontar essas questões.
Outro exemplo dessa matéria, tratando de diferenças de classificação das notícias, pode ser visto comparando o tratamento de um destaque selecionado do programa de Alvaro Dias (Podemos) com outro do programa petista. Dias menciona um estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que projeta que 2,3% do PIB é perdido com práticas de corrupção, o que equivaleria a R$ 100 bilhões. A informação é dada como verdadeira apenas porque realmente pode ser encontrada em um estudo da Fiesp. O estudo, entretanto, usava dados de 2010 e o valor atualizado desse percentual do PIB, em 2017, seria de mais de R$ 150 bilhões, segundo a checagem. Ainda assim, a informação foi classificada como “Fato”, ou seja, verdadeira.
PublicidadeJá em uma análise do programa petista que menciona que seus governos teriam criado 20 milhões de empregos, a informação foi classificada como “Não é bem assim”. Os dados apresentados na verificação mencionam 20,8 milhões de empregos formais criados entre 2003 e 2014, mas a checagem destaca que dados atualizados de 2015 indicariam uma retração no emprego e que o saldo seria, na verdade, de 19,3 milhões de empregos. Ou seja, para um partido, os dados não atualizados não fizeram diferença na classificação da checagem. Para outro, sim – sem falar no problema da simplificação da verdade factual como mera correspondência a índices numéricos, que marca várias das análises presentes no “Fato ou Fake” e em outras checagens.
Os interesses do Grupo Globo com relação a algumas propostas dos presidenciáveis também perpassaram as análises dos programas. O tema da Previdência é um exemplo. A checagem da fala de Marina Silva (Rede) de que “a Reforma da Previdência é incontornável, o gasto total com benefícios alcança 13% do PIB, excessivamente alto para o nosso perfil etário”, apenas confirma o número mencionado e a classifica como “Fato”. Assim, não coincidentemente, também foi tratada como “Fato” a incontornabilidade da reforma, algo questionado por muitos especialistas.
Em 2017, a ONG Repórter Brasil publicou análise demonstrando que a grande mídia ignora as críticas à Reforma da Previdência em sua cobertura. Agora, pelo visto, também o fazem as iniciativas de checagem desses meios. As da Agência Lupa, sobre o mesmo tema, trazem comentários de apenas um economista e também naturalizam a mercantilização da Previdência.
“Dá pra fazer?”: reivindicando a palavra final sobre as propostas
A checagem do UOL Confere, mais ousada na reivindicação da verdade, anuncia se é ou não possível que os candidatos/as executem suas propostas de programa. A série UOL Confere Promessas de Campanha pretende, para todas as propostas, responder se “é viável ou não é?”. A proposta é classificar cada promessa entre “Dá pra fazer”, “Dá para fazer, mas depende…”, “Não dá pra fazer” ou “Blá-Blá-Blá”.
Nesse projeto, há contribuições mais significativas nas análises sobre as propostas, por haver informações sobre o contexto e as maneiras planejadas pelo candidato/a para efetivá-las. No entanto, a ampliação da compreensão dos temas fica comprometida dada a participação de poucos “especialistas”, com pouca diversidade, para darem a palavra final sobre as medidas.
A proposta de Ciro Gomes de tirar o nome dos devedores do SPC foi classificada como “Dá pra fazer, mas especialistas questionam mecanismo e duvidam da eficácia”. Ao invés de expor a diversidade de posições de economistas com diferentes pontos de vista sobre o tema, a posição de autoridade do “especialista” escolhido pelo UOL foi usada para fundamentar a análise do grupo de comunicação com posições uníssonas. O ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos e colunista do liberal Instituto Millenium, Roberto Troster, foi um dos consultados e fez a defesa de que “a criação das linhas de crédito nos bancos públicos só poderia ser feita se gerar lucro às instituições” – argumento apresentado como se essa compreensão do papel dos bancos públicos fosse consensual no campo, e não contestada ou contraposta.
A naturalização de posições predominantemente liberais sobre o orçamento e o teto de gastos está presente ainda em outras análises, envolvendo a demanda por recursos. A proposta de Geraldo Alckmin (PSDB) de ampliar o valor do Bolsa Família a partir de 2020 foi classificada como “Dá para fazer, mas depende da promessa de zerar o déficit público em dois anos ou de apoio no Congresso”.
A diversidade de posições entre as pessoas que são referência na área seria fundamental para qualificar este debate e a checagem da “viabilidade” da proposta. Mas raramente essa pluralidade aparece nas análises. À exceção à proposta de revogar a Reforma do Ensino Médio, de Fernando Haddad (PT), que foi avaliada como “Dá pra fazer, mas depende da aprovação do Congresso”, em que houve consulta a posições discordantes, na maioria dos casos a checagem do UOL apresentada opiniões semelhantes sobre as propostas, invisibilizando as divergências sempre existentes nos diversos campos do debate político.
Foi o que aconteceu também na análise da proposta de Ciro Gomes de taxar grandes heranças, considerada irrelevante pelos especialistas, e da carteira de trabalho verde e amarela com menos direitos, proposta por Jair Bolsonaro (PSL), considerada “Blá-blá-blá”. Para os especialistas consultados, a proposta é apenas simbólica e uma mudança real exigiria uma nova reforma da legislação trabalhista.
Para além da falta da diversidade de especialistas consultados, o perfil dos ouvidos pelo projeto Confere também influencia no resultado da análise do programa dos candidatos. Em alguns casos, como na proposta de Marina Silva (Rede) de criar 2,5 milhões de vagas em creches, foram ouvidos especialistas na área específica referente à questão.
Em outros, como na proposta petista de contratar 2 milhões de unidades do Minha Casa, Minha Vida até 2022 – classificada com “Dá pra fazer, mas será preciso cortar outras despesas” – não foram apresentados os diferentes posicionamentos entre as “autoridades” da área: foram ouvidos um especialista em finanças e microcrédito e um representante do setor industrial, mas nenhuma referência em política habitacional ou urbana, por exemplo.
Silenciar posições e divergências também é desinformar. Ao simplificar as análises e omitir questões fundamentais nas checagens de programas de governo, a grande mídia contribui para manter um debate público empobrecido no contexto eleitoral.
A reivindicação do poder de discernir verdade e mentira pelos grandes meios acompanha, muitas vezes, uma simplificação da diversidade de posições existentes e uma redução do debate de complexos temas sociais à conferência seletiva de números e aos “carimbos”, questionáveis, produzidos por essas ferramentas de checagem.
Assim, a miséria do debate público que vivenciamos em mais essa eleição também é viabilizada pelos silenciamentos dos grandes meios, tantas vezes coniventes com narrativas que desinformam e muitas outras impondo supostos “consensos” de cima para baixo, conforme interesses dos grupos empresariais de que fazem parte. Por isso, há urgência de uma agenda regulatória focada em coibir a concentração midiática e em propiciar a diversidade e pluralidade de vozes na sociedade, promovendo uma qualificação das informações em circulação e debates públicos – sobretudo em períodos eleitorais – efetivamente democráticos.