Analistas traçam cenários bastante variados ao especularem sobre possíveis desdobramentos da atual crise na Venezuela, mas tendem a concordar em dois aspectos fundamentais. O primeiro é que os conflitos que hoje opõem o autoproclamado presidente Juan Guaidó, da oposição, e Nicolás Maduro, que se mantém no poder graças ao apoio das Forças Armadas, estão longe do fim. O segundo é que o desfecho da crise dependerá, sobretudo, do papel que será exercido pelos militares venezuelanos.
Envolvida em denúncias que incluem acusações de corrupção, de práticas de tortura e de participação no narcotráfico, a cúpula militar da Venezuela resiste a fazer concessões – assim como Maduro pelo receio de punições e de processos judiciais, afirma o professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.
“O mais provável é a continuação por mais algum tempo do status quo atual”, acredita ele, “que é algo sem precedentes na história mundial recente. É raríssimo ter uma situação em que uma pessoa perde a esse ponto o apoio da população, que em sua maior parte deixa de ver nela legitimidade para presidir o país, e mantém o controle territorial apoiado nas Forças Armadas”.
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Segundo o professor Eduardo Heleno, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, isso se tornou possível por causa do processo de militarização a que a Venezuela foi submetida em duas décadas de chavismo. Iniciado pelo ex-presidente Hugo Chávez, esse processo foi significativamente aprofundado por Maduro, um ex-sindicalista que enxergou nessa via o caminho mais seguro para permanecer no poder.
Para aliciar os militares, ele transformou a Venezuela na nação com o maior número de generais do planeta. São perto de 2 mil, considerando Exército, Marinha e Aeronáutica. O Brasil, por exemplo, tem cerca de 300. Oficiais também foram premiados com a direção de empresas estratégicas e nomeações para cargos governamentais próprios de civis. Ocupando a chefia de governos estaduais (75% dos estados são administrados por aliados de Maduro) e grande parte do ministério, os militares controlam o abastecimento, a energia e várias outras áreas-chave do país.
“Tivemos na Venezuela a militarização feita por um civil, que é o Maduro”, diz o professor da UFF.
“Ele transformou o generalato em moeda de troca política e aumentou o número de empresas militares. São mais de 20, algumas atuando em atividades como fabricação de caminhões ou até mesmo na agricultura. Os militares venezuelanos conquistaram um poder muito grande e são, e a meu ver continuarão sendo, os principais atores da crise que o país enfrenta. O movimento que eles
fizerem determinará o futuro de Maduro e da Venezuela”.
Desde 2014 mais de 3 milhões de pessoas deixaram a Venezuela. Fugiram de uma inflação que este ano deve passar de 10.000.000%. Sim, dez milhões por cento! Mais de 80% das famílias não têm acesso suficiente a comida. O abastecimento é caótico. Os apagões elétricos, frequentes. Os salários, de quem teve a sorte de manter o emprego, viraram pó em razão da política inflacionária. Para compensar o fim das receitas generosas proporcionadas até 2008 pelos preços internacionais do petróleo, que responde por 96% das exportações, o governo passou a imprimir sem limites uma moeda a cada dia mais desvalorizada. A economia venezuelana teve uma queda de 18% ano passado. Estima-se que o PIB cairá 25% em 2019.
Intervenção externa
Nem Oliver Stuenkel nem Eduardo Heleno consideram provável, ao menos no atual estágio dos acontecimentos, uma intervenção militar externa, capitaneada pelos Estados Unidos, hipótese que chegou a ser admitida publicamente pelo secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, e pelo próprio presidente Donald Trump. Mas ambos alertam que essa possibilidade não pode ser totalmente descartada.
“Há uma grande pressão de uma parcela importante das elites venezuelanas, hoje em boa parte residentes na Flórida e em outros estados norte-americanos, para que os Estados Unidos intervenham”, observa Oliver. A intervenção representaria uma contradição com a pregação que o presidente Donald Trump tem feito, desde o tempo em que se lançou candidato, pela saída de tropas americanas de outros países e pela redução dos gastos militares com operações externas.
“Mas aqui tem uma chave que dá sentido a essa aparente contradição”, esclarece o professor da FGV-SP. “Além da pressão vinda da comunidade latina residente nos EUA, você está lidando com um país geograficamente muito próximo, num momento em que há grande preocupação com a ascensão da China na América Latina. Sem falar que, ao menos num primeiro momento, uma intervenção poderia trazer dividendos eleitorais, o que pode contar em 2020, quando os Estados Unidos terão novas eleições presidenciais”, completa Oliver Stuenkel.
Conforme os analistas, em qualquer hipótese, a intervenção militar não teria a aprovação das Forças Armadas brasileiras. Mas não se sabe como se comportaria o presidente Jair Bolsonaro. E se ele decidisse apoiar, inclusive militarmente, a intervenção? “Não considero provável o Brasil entrar e nem seria prudente”, afirma Eduardo Heleno. “Nada pior para um país que sempre aspirou, e alguns momentos foi, líder regional do que invadir o vizinho”.
Brasil é figurante
Já colhemos no Brasil um dos primeiros efeitos da rebelião deflagrada na última terça-feira (30), sob a liderança de Guaidó, para tentar tirar Nicolás Maduro do poder. Voltaram a engrossar os contingentes de venezuelanos que cruzam nossa fronteira, buscando reconstruir a vida em território brasileiro. Somos o quarto destino mais procurado por quem foge da tragédia venezuelana, atrás de Colômbia, Chile e Peru.
Reflexos da crise devem se estender aos preços internacionais do petróleo. Embora a Venezuela seja dona das maiores reservas do produto no mundo, enfrenta o bloqueio comercial e financeiro dos EUA, que já foi o seu maior importador, e produz atualmente 900 mil barris/dia. Isso representa menos de um terço do que o país chegou a produzir. Oferta menor, alta no preço. Ou seja, os combustíveis, que já têm aumentado bastante no Brasil, têm boas chances de serem impulsionados por outro fator de pressão altista.
Uma intervenção, principalmente se for seguida por uma guerra civil, poderia trazer problemas bem maiores. Investidores não gostam de instabilidade e de incertezas. Um cenário desse gênero poderia levá-los a riscar não só o Brasil, mas toda a América do Sul, dos seus planos de investimentos de curto e médio prazo.
Fora isso, diz Oliver, “o Brasil é figurante nesse conflito”. Além das Forças Armadas venezuelanas, quem tem poder para exercer protagonismo são os governos dos EUA (pró-Guaidó) e da China e da Rússia (os dois, pró-Maduro). “Em algum momento o Maduro vai cair, mas não agora. Estamos falando de um processo que pode ser lento. E é uma falácia achar que a Venezuela será reconstruída em pouco tempo. O país vai demorar de dez a 20 anos para se recuperar”
Quem pode virar a mesa, na avaliação do professor Eduardo Heleno, seriam os oficiais dissidentes e a média e baixa hierarquia militar: “Temos ao mesmo tempo crise institucional, econômica, política, social, migratória… e todas essas crises podem mudar o comportamento das camadas médias da hierarquia militar. Os militares de baixa patente estão cada vez mais descontentes e podem alterar o rumo dos acontecimentos. A insatisfação deles pode levar as Forças Armadas a reverem o apoio ao Maduro”. Um sinal dessa insatisfação foi a adesão de uma pequena fração das Forças Armadas à fracassada tentativa de deposição feita na última terça-feira. Outro está no aumento das deserções. Estima-se que, desde o ano passado, mais de 1,6 mil militares abandonaram as três forças armadas e, principalmente, a Guarda Nacional. Ela e as milícias bolivarianas, os “colectivos”, costumam cuidar da parte mais cruel da repressão aos que ousam desafiar a ditadura de Maduro.
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