Poesia, a uma hora dessas? Tudo que o mundo mais precisa! Gullar desvendou essa demanda existencial: “A arte existe porque a vida não basta”. Não basta e às vezes sufoca. “A gente se acostuma, mas não devia”, advertiu Marina Colasanti. Como banalizar as cenas que chegam da Ucrânia, de Gaza e de Israel? Fingir que tudo está bem e vida que segue?
A cada vez que vejo Javier Milei e sua motosserra, mais vontade tenho de rever Elis & Tom. A cada bravata de Trump, bate saudades de Guimarães e Drummond. Diante de cada nada edificante bate-boca entre extremistas brasileiros, repleto de xingamentos onde ecoam: “fascistas”, “comunistas”, “canalhas”, “ladrões”, mais atraente se torna o universo de Paulinho da Viola e seus oitenta anos.
Dos olhos dos emigrantes famintos e desesperançados ao encontrar uma cerca de arame farpado ou uma barreira policial na fronteira de um país rico, nasce a fome de uma tela de Picasso ou um filme de Chaplin.
Geralmente falo aqui sobre economia, política e administração pública. Mas como se calar diante das doenças crônicas desse mundo caduco? A esperança virou produto escasso. A insensatez impera. O diálogo deixou de ser uma vocação humana. A fé cega dos fanáticos obscurece a razão e a sensibilidade.
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Quando a angústia ameaça dominar, nada melhor do que um mergulho no universo da arte. Se a vida não basta, muito pior quando ela se apequena.
Nesse sentido, foi um privilégio, nas últimas semanas, penetrar no complexo e contraditório mundo do poeta Fernando Pessoa. Acabei de ler sua magistral biografia escrita por Richard Zenith descrita pelo New York Times como um livro “definitivo e sublime”.
Fernando Pessoa sempre me atraiu por uma coincidência singela, ambos nascemos no dia de Santo Antônio, 13 de junho. Geminianos autênticos. Ele, Fernando, porque era o nome anterior do Santo. Eu, que deveria chamar Marco Antônio, virei Marcus Vinicius, porque o filme “Quo Vadis” e seu general romano cruzaram o caminho de minha mãe na gravidez.
PublicidadeFernando não cabia em si, era vários. Precisou de mais de 130 heterônimos para se expressar e extravasar seus fantasmas, suas dúvidas e ambiguidades. Liderados por Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro Campos e Bernardo Soares, dezenas de “encarnações” supriram as infinitas necessidades do poeta. Era, no fundo, completamente louco.
Fernando não teve reconhecimento em vida. Publicou um único livro até a morte, além de poemas e artigos em revistas culturais de pequena tiragem que ajudou a fundar. O poeta tinha extrema dificuldade de ter foco e deixava centenas de textos e projetos inconclusos pelo caminho, que felizmente ficaram guardados em seu famoso baú. Sonhava em ser o novo Camões. E o foi, após partir.
Fernando Pessoa era um escritor vulcânico, a inspiração vinha e qualquer guardanapo ou papel timbrado servia de estuário para sua volúpia criativa. Sua solteirice inarredável escondia sua ambiguidade sexual e dificuldade de lidar com o afeto. Não sobreviveria na sociedade do “politicamente correto” dadas certa dose de misoginia, visão sociológica elitista, relação contraditória com a ditadura de Salazar. Refugiava-se no esoterismo para aplacar sua falta de fé e o tédio que às vezes o dominava.
Aqui não é lugar para uma resenha exaustiva. Quer um conselho? Leia Pessoa, uma biografia, de Richard Zenith.
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