Organizações da sociedade civil repudiaram nesta sexta-feira (17) condenação da jornalista Schirlei Alves, autora de reportagem que revelou o caso Mari Ferrer. A Justiça de Santa Catarina a condenou a um ano de prisão em regime aberto por difamação contra o juiz e o promotor do caso. De acordo com a decisão, Schirlei também terá que pagar R$ 400 mil.
As multas devem ser pagas para o juiz Rudson Marcos e para o promotor Thiago Carriço. Tanto o promotor quanto o juiz processaram a jornalista por danos morais depois de Schirlei revelar os detalhes do caso no site The Intercept Brasil.
“É inadmissível e ultrajante que uma jornalista, no exercício da sua profissão, relatando um grave assunto de interesse público, seja duramente punida e condenada criminalmente por supostamente ofender a honra de funcionários públicos”, diz nota das organizações. Leia o texto completo ao fim desta reportagem.
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Assinam o documento nove instituições:
- ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
- Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
- Associação de Jornalismo Digital (Ajor)
- Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)
- Instituto Tornavoz
- Instituto Vladimir Herzog
- Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores
- Repórteres Sem Fronteiras (RSF)
- Associação Fiquem Sabendo
As organizações lembram que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) advertiu disciplinarmente o juiz Rudson Marcos por sua atuação no caso Mari Ferrer na última terça-feira (14). A relatora do caso, Salise Sanchotene, afirmou que o juiz tinha o dever legal de evitar a revitimização durante audiência pública.
“É incompreensível, portanto, que Schirlei seja condenada à prisão e a pagar uma vultosa indenização, incompatível com sua renda e patrimônio – num montante que nem mesmo grandes veículos de comunicação suportariam – ao funcionário público cuja conduta foi considerada incompatível com os deveres que permeiam a atividade jurisdicional”, afirmam as organizações.
PublicidadePara as instituições, tanto o caso Mari Ferrer – origem da Lei Mariana Ferrer, que obriga o juiz a zelar pela integridade da vítima em audiências de instrução e julgamento sobre crimes contra a dignidade sexual – quanto o processo contra Schirlei são permeados por violência de gênero. O documento afirma ainda que o papel do jornalismo é o “escrutínio de agentes públicos”.
A defesa da jornalista já afirmou que irá recorrer da decisão. Em nota, Schirlei afirmou que seu sentimento é de injustiça e de que está sendo punida por fazer seu trabalho.
“Essa decisão me parece uma tentativa de intimidação, de silenciamento não só da minha pessoa, mas de outros jornalistas que cobrem o judiciário e fazem um jornalismo investigativo, fiscalizador e de denúncia.”
Leia a íntegra da nota das organizações da sociedade civil:
“A juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, titular da 5ª Vara Criminal de Florianópolis, condenou a jornalista Schirlei Alves a um ano de prisão e ao pagamento de R$ 400 mil em indenização pelo crime de difamação, em decorrência da publicação de reportagem sobre o caso da influenciadora digital Mariana Ferrer. Mariana foi humilhada durante o depoimento que prestou, na qualidade de vítima, no julgamento do acusado de estuprá-la em 2018. Em reportagem publicada em 2020 pelo The Intercept Brasil, Schirlei Alves revelou o constrangimento e a violência praticados contra Mariana no curso do processo. O episódio causou indignação nacional e motivou a criação da Lei 14.245, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos.
“Os processos criminais que agora levaram à condenação de Schirlei Alves foram movidos pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira envolvidos no julgamento do estupro de Mariana Ferrer. A situação de humilhação a qual foi submetida a influencer, revelada pela jornalista, é tão flagrante que, na última terça-feira (14.nov.2023), o Conselho Nacional de Justiça puniu o magistrado por sua omissão na condução da audiência.
“É incompreensível, portanto, que Schirlei seja condenada à prisão e a pagar uma vultosa indenização, incompatível com sua renda e patrimônio – num montante que nem mesmo grandes veículos de comunicação suportariam – ao funcionário público cuja conduta foi considerada incompatível com os deveres que permeiam a atividade jurisdicional. Mais do que isso, é inadmissível e ultrajante que uma jornalista, no exercício da sua profissão, relatando um grave assunto de interesse público, seja duramente punida e condenada criminalmente por supostamente ofender a honra de funcionários públicos.
“Vale destacar a violência de gênero permeia toda a história que une Mariana Ferrer e Schirlei Alves. Uma mulher é humilhada perante à Justiça num momento em que tanto o juiz como o promotor tinham o dever de protegê-la. A jornalista que revela esse gravíssimo episódio também sofre, na sequência, uma violência do Poder Judiciário, que se soma a outras enfrentadas diariamente por mulheres jornalistas – alvos preferenciais no conjunto de ataques contra a imprensa no Brasil.
“O jornalismo é elemento essencial para garantir o escrutínio de agentes públicos. Os fatos revelados pela reportagem de Schirlei Alves não caracterizam ataques à honra do promotor e do juiz envolvidos, mas sim o direito da imprensa de informar e o dever do agente público de prestar contas. Foi a partir da reportagem de Schirlei Alves que o caso foi amplamente debatido na sociedade, culminando, como mencionado, na aprovação da Lei Mariana Ferrer.
“Schirlei Alves é uma profissional conhecida nacionalmente pela relevância e seriedade de seu trabalho como repórter. Manifestamos assim nossa profunda solidariedade a ela, reafirmando a confiança em seu trabalho. E esperamos que o Poder Judiciário reconheça, nas instâncias recursais, a importância do jornalismo, das mulheres jornalistas e da liberdade de imprensa, com a integral reversão dessas absurdas decisões.
“Tratam-se, neste momento, de dois dos seis processos judiciais enfrentados por Schirlei Alves, em virtude da mesma matéria jornalística. Serão muitas as oportunidades para que o Judiciário brasileiro define se protege as liberdades de expressão e de imprensa, ou se nos leva pelo caminho sombrio que conduz jornalistas à autocensura e ao encarceramento.
“17 de novembro de 2023.
“Assinam este documento:
“ARTIGO 19 Brasil e América do Sul
“Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
“Associação de Jornalismo Digital (Ajor)
“Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)
“Instituto Tornavoz
“Instituto Vladimir Herzog
“Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores
“Repórteres Sem Fronteiras (RSF)
“Associação Fiquem Sabendo”
Também se manifestou a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que oficiou o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, sobre o caso. “Essas sentenças, exaradas pela juíza Andrea Cristina por suposto crime de difamação a funcionários públicos, confirmam, no entendimento da ABI, todo o assédio judicial a que estão submetidos jornalistas e comunicadores, notadamente em ações movidas por membros do Judiciário, como no caso em tela”, alertou o presidente da entidade, Octávio Costa.
A ABI ressaltou que a sentença proferida por Andrea Cristina não afeta apenas a jornalista Shirlei Alves, mas toda a categoria, pois “é uma ameaça e intimidação a todas e todos os jornalistas, algo inaceitável no Estado Democrático de Direito”. A associação pede previdências, relembrando se tratar de uma das práticas das quais Barroso consideraria inadimissíveis por parte do Judiciário.
Confira a íntegra do ofício:
“Exmo. Sr. Presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF)
MD Ministro Luís Roberto Barroso
Prezado Ministro,
Relembrando o encontro em que V. Ex.a gentilmente recebeu onze entidades de defesa da Liberdade de Imprensa, em 16 de outubro pp, quando relatamos o contexto de hostilidade e violência ao quais jornalistas e comunicadores são alvos em processos judiciais abusivos e intimidatórios, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) entende necessário alertá-lo sobre o caso específico da jornalista Schirlei Alves, repórter do Intercept Brasil, nos processos 5041519-20.2021.8.24.0023 e 5002530-59.2021.8.24.0082, em tramitação na 5a Vara Criminal de Florianópolis (SC).
Nesses dois autos, a jornalista foi condenada pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer a um ano de prisão em regime aberto e ao pagamento de R$ 200 mil, em indenizações, respectivamente ao juiz Rudson Marcos e ao promotor Thiago Carriço de Oliveira, ambos de Santa Catarina.
A condenação da jornalista a um ano de prisão, ainda que em regime aberto, e a uma multa próxima de 300 salários mínimos, encaixam-se no “contexto de hostilidade e violência a jornalistas e comunicadores alvos de processos judiciais abusivos e intimidatórios” tal como nós o alertamos no encontro de 16 de outubro, na sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Essas sentenças, exaradas pela juíza Andrea Cristina por suposto crime de difamação a funcionários públicos, confirmam, no entendimento da ABI, todo o assédio judicial a que estão submetidos jornalistas e comunicadores, notadamente em ações movidas por membros do Judiciário, como no caso em tela.
Em processo que estranhamente corre em segredo de justiça contrariando a regra geral de transparência, Schirlei está sendo punida por ter denunciado em 2020 humilhações sofridas pela influenciadora digital Mariana (Mari) Ferrer, vítima de estupro em 2018, em audiência judicial que terminou por inocentar o agressor da influenciadora.
Humilhações essas praticadas pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, na presença do juiz Marcos e do promotor Carriço, na sala de audiência da 3a Vara Criminal de Florianópolis, em uma das sessões do julgamento do empresário André de Camargo Aranha que, acusado pelo estupro, acabou absolvido.
Surpreendentemente, a reportagem sobre as injúrias à vítima na audiência judicial – que segundo a juíza humilhou seu colega magistrado e o promotor e justificou a condenação da repórter Schirlei – teve efeito diverso no Legislativo e no Conselho Nacional de Justiça.
A partir da publicação, o Congresso Nacional aprovou a Lei Mariana Ferrer (Lei 14.248 de 11/21) visando coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo de crime contra a dignidade sexual.
Já o CNJ, em sessão na última quarta-feira (14/11), na 17a Sessão Ordinária de 2023, aprovou, por unanimidade, a aplicação da pena de advertência ao magistrado Rudson Marcos, por omissão no julgamento de ação penal que tratava de suposto crime de estupro de vulnerável.
E por permitir e perpetuar a humilhação de Mari Ferrer na sala de audiências. Para a conselheira Salise Sanchotene, relatora do Processo Administrativo Disciplinar (PAD), o magistrado não exerceu o controle necessário na audiência e tampouco repreendeu o advogado: “O magistrado tinha o dever legal de impedir os abusos, evitando assim a revitimização da jovem envolvida no caso”, afirmou.
A ABI entende que a promulgação da lei assim como a recente advertência ao magistrado, evidenciam o acerto do trabalho de Schirlei e sua efetiva função social ao noticiar informações de relevante interesse público.
Ao mesmo tempo, diante da injusta, desproporcional e nitidamente corporativa sentença da juíza Andrea Cristina, a ABI recorre a V. Ex.a por entender que esse caso insere-se entre aqueles que o senhor, na conversa com as entidades, advertiu que não podem ser admitidos, qual seja, casos em que o jornalismo é acuado e por isso corre o risco de não conseguir cumprir o seu propósito de divulgar informações de interesse público.
A ABI alerta que a sentença da juíza Andrea Cristina não atinge apenas a nossa colega Schirlei Alves. É uma ameaça e intimidação a todas e todos os jornalistas, algo inaceitável no Estado Democrático de Direito. Esperamos a pronta e ágil reforma dessa decisão e as devidas providências do Judiciário para por fim a esse contexto de hostilidade e violência aos jornalistas em geral.
Certos da sua compreensão colocamo-nos ao inteiro dispor para quaisquer esclarecimento.
Atenciosamente
Octávio Costa
Presidente da ABI”