por Dom Leonardo Steiner*
O Brasil se encontra, mais uma vez, diante de um desafio e de uma oportunidade histórica para avançar decisivamente na garantia da vida, dos territórios e dos direitos dos povos indígenas, primeiros habitantes deste espaço que hoje temos como país.
A capacidade de persistência dos mais de 300 povos indígenas que hoje existem no Brasil, após um processo secular de imposição e de extermínio, e sua perspectiva ética de um horizonte aberto a caminho de uma sociedade plural e do Bem Viver, representam pilares fundamentais sem os quais não conseguiremos construir qualquer perspectiva de futuro como sociedade.
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Em 1988, o Brasil constituiu nosso marco fundamental de convivência, com a promulgação da atual Constituição Federal – e os povos indígenas contribuíram de forma decisiva para a configuração deste marco. Aqueles que na época eram considerados pelo Estado como incapazes e necessitados de tutela mostraram mais uma vez sua tenacidade política e sua força de mobilização em todo o país. Arrancaram do Estado o reconhecimento mínimo de seu direito a ser e a viver, de suas formas próprias de organização social, de suas línguas, costumes e tradições e de seu direito originário às terras que tradicionalmente ocupam.
Entretanto, ao longo destes 35 anos, o Estado avançou muito pouco na efetivação destes direitos. Hoje, comunidades inteiras permanecem despojadas de seus territórios, acampadas na beira de estradas, sob a lona preta e à mercê de todo tipo de violências. A maior parte das terras indígenas ainda não está demarcada e muitas daquelas que já foram homologadas continuam sofrendo com a invasão e a exploração ilegal e predatória de seus bens.
O “marco temporal”
Ao longo destas décadas, grupos de grande poder econômico e político nunca deixaram de agir para derrubar, reduzir, limitar e impedir a efetiva garantia dos direitos conquistados pelos povos indígenas, particularmente seus direitos territoriais. E a última tentativa destes grupos para derrubar os direitos dos povos indígenas é o que veio a ser chamado de “marco temporal”.
Segundo esta tese, que se mostra imoral e falaciosa, só teriam direito a seus territórios aqueles povos indígenas que conseguirem demonstrar que se encontravam fisicamente naquele lugar na data de 5 de outubro de 1988 ou que estavam litigando, física ou juridicamente, a posse dessa terra.
Aqueles que defendem essa tese ignoram todo o processo de extermínio e de esbulho dos territórios que se deu antes dessa data. Não só ignoram, mas pretendem, com o marco temporal, legitimar uma declaração de impunidade com relação a todas as atrocidades e violências cometidas historicamente contra os povos indígenas até outubro de 1988.
Eles buscam apagar da memória o fato de que a mobilização dos povos indígenas em todo o país durante o processo constituinte, em defesa de seus direitos, é sinal inequívoco de que os povos estavam, sim, pleiteando naquele momento a devolução de seus territórios roubados e o reconhecimento de seus direitos originários.
Em setembro de 2023, no âmbito do Recurso Extraordinário 1.017.365, dotado de repercussão geral (Tema 1031), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou por ampla maioria que o marco temporal não existe e é inconstitucional. Neste julgamento, o STF mostrou a determinação devida na fidelidade ao desejo dos constituintes e, também, na compreensão do desafio que estava em jogo. No entanto, o marco temporal voltou recentemente à cena política através de uma lei ordinária aprovada pelo Congresso Nacional.
Com a promulgação da Lei 14.701, em dezembro de 2023, o Congresso Nacional retrocedeu todos os passos que até o momento tínhamos conseguido dar neste tema como sociedade. De forma impositiva, esta lei pretende fixar o chamado marco temporal como parâmetro para a demarcação de terras indígenas no Brasil, o que significa, na prática, inviabilizar a garantia desses territórios, anistiar as atrocidades do passado e impedir a possibilidade de futuro como país.
Mais do que isso ainda: a lei abre os territórios indígenas a interesses econômicos de terceiros e retoma uma perspectiva colonial que atribui ao Estado o poder de julgar e definir os caminhos de vida que só aos povos pertencem. Na contramão do consenso estabelecido na Constituição Federal de 1988 e em expressa contradição com a decisão do STF, o Congresso Nacional afrontou a vida dos povos indígenas e faz retroceder o Brasil às épocas mais escuras e violentas de sua história.
Que interesses particulares se escondem por trás desta decisão? A serviço de quem se legisla quando as leis são injustas e imorais? A quem interessa apagar a memória da violência e do esbulho, do extermínio e da opressão? Não existe marco temporal algum para direitos que são originários e imprescritíveis, fundamentais e inalienáveis.
O único caminho possível
A luta dos povos indígenas por seus territórios supera, eticamente, a ideia mesquinha da terra como propriedade e como recurso a ser explorado, parâmetro do modelo capitalista de produção e de consumo. Por isso é uma luta necessária e incontestável, imprescindível para todos nós. Uma luta que nasce e se nutre de uma profunda e densa dimensão espiritual, expressada de formas diversas por cada povo.
A segurança dos territórios indígenas está intrinsecamente relacionada com a preservação da vida, da biodiversidade e das condições de futuro para todos. É o singular e profundo vínculo e sentido de pertença dos povos a seu território, como condição primordial de ser, que se configura como paradigma ético fundamental, alternativo e necessário.
Hoje temos, como sociedade, um único caminho possível para avançar em direção a um horizonte ético e político de justiça e de garantia para a vida de todas e todos. Esse caminho passa, necessariamente, pela demarcação e homologação dos territórios indígenas, conforme o previsto na Constituição Federal; sem atalhos, sem arranjos, mas com determinação política. E isto obriga ao conjunto do Estado, aos Três Poderes, cada um em suas responsabilidades e atribuições. Na garantia dos territórios, livres de qualquer interferência e invasão, reside também o reconhecimento dos projetos de vida dos povos indígenas, na sua diversidade e pluralidade, de seus sistemas culturais próprios e de sua plena autonomia.
Para isso, é fundamental que as instituições do Estado assumam sua responsabilidade e sua missão institucional, garantindo os direitos originários dos povos indígenas e declarando de forma iminente a inconstitucionalidade da Lei 14.701. É este o único caminho para retomar a senda de uma sociedade fundamentada no respeito, no diálogo, na justiça e no direito.
É imprescindível que avancemos, como país, no caminho das políticas de restauração, de Memória, Verdade e Justiça. É urgente reconhecer – e não apagar – os crimes e atrocidades cometidas contra os povos indígenas deste país.
É essencial, enfim, que o Brasil caminhe no reconhecimento da contribuição imensurável que os povos indígenas, como sujeitos coletivos de direitos e detentores de sistemas culturais próprios e de horizontes éticos insubstituíveis, representam para a preservação da vida e para a defesa de uma democracia sempre mais radical, a caminho do Bem Viver para todas e todos.
* Dom Leonardo Steiner é cardeal, arcebispo de Manaus (AM) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
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