Dados da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), mostram que em 1994 foram registradas as duas primeiras candidaturas coletivas no país. O movimento permaneceu tímido até 2016, ano em que houve um aumento significativo destas propostas, pelo menos 98 registros foram contabilizados pela entidade. De acordo com dados de um levantamento feito pelo portal UOL para 2020, apenas na capital paulista, há 34 candidaturas coletivas concorrendo ao pleito deste ano.
Números oficiais, no entanto, ainda não existem. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não prevê uma legislação sobre o tema. De acordo com o ex-ministro do TSE, Joelson Dias, o tribunal só poderá regulamentar o assunto após a existência de uma legislação específica. Segundo o magistrado, o tema divide opiniões e há questões importantes a serem normatizadas, como a apresentação do candidato, o registro do nome na urna, a administração de recurso de campanha e a atuação do mandato.
Na prática, hoje apenas um candidato registra a candidatura e promete realizar uma consulta às suas bases sobre propostas e decisões a serem tomadas. O ex-ministro enxerga esse tipo de proposta como “uma forma nova de tentar recuperar um pouco da legitimidade da democracia”. Joelson não vê ilegalidade no fato dos candidatos se apresentarem como parte de um coletivo e ressalta que o eleitor deve ter acesso a esta informação.
Leia também
No mês passado, o Ministério Público Eleitoral em Pernambuco recorreu ao TSE para garantir o uso de nome escolhido pela candidatura coletiva do Coletivo Elas, em Ouricuri. O objetivo é tentar reverter decisão da Justiça Eleitoral do estado, que indeferiu os nomes escolhidos por Adevânia Coelho de Alencar Carvalho (Psol) para figurar na urna eletrônica. Ela é a candidata oficial de um grupo de três mulheres que disputam, coletivamente, uma vaga na Câmara Municipal.
O Mandato Coletivo Permacultural (Rede), em Alto Paraíso (GO), também teve os registros do nome na urna questionado pela Justiça Eleitoral. A regulamentação do assunto é pauta de um projeto que tramita no Congresso desde 2017, a PEC 379, de autoria da deputada licenciada Renata Abreu (Podemos-SP).
Retórica
O líder da Raps, Leonardo Secchi, explica que existem campanhas coletivas em todos os espectros ideológicos, mas há um número maior destas iniciativas em partidos posicionados à esquerda. O especialista compreende o fenômeno como um reflexo de uma “crise da representatividade”, da “descrença nas candidaturas tradicionais” e nos partidos políticos. “As candidaturas coletivas são estratégias de renovar uma esperança. O pressuposto básico do mandato coletivo é que tem de haver esse acompanhamento contínuo da população e das pessoas que compõem o grupo durante os quatro anos e não ter aquela questão de só encontrar o político no período eleitoral”, explica.
Para a doutoranda em ciência política na USP e pesquisadora no Cebrap, Graziele Silotto, o fenômeno deve ser observado com “cuidado” e com “um olhar menos ingênuo”. Ela sinaliza que a falta de regulamentação torna “opaco” o funcionamento deste tipo de mandato, já que para o eleitor não há garantias de que tais consultas às bases vão, de fato, ocorrer.
Além de não ser um fenômeno exatamente novo, diz a pesquisadora, é “forte” afirmar que ele seja consequência de uma crise da representatividade. “Antes de fazer essa afirmação a gente precisa pensar um pouco mais sobre este assunto. O que é seguro dizer é que é uma jogada política retórica por conta do voto, para mobilizar públicos diferentes, para se destacar. No final das contas, é isso que político quer, se destacar para o eleitor”, aponta.
Candidaturas
O vereador professor Gilmar Santos (PT) concorre à reeleição num formato de mandato coletivo pioneiro na cidade de Petrolina, localizada no sertão pernambucano, às margens do Rio São Francisco. Sua experiência inspirou outras iniciativas do tipo que surgiram nestas eleições na região. Ele explica que há uma certa “redundância” no termo “mandato coletivo”, pois, na verdade, todos os “mandatos deveriam ser coletivos”.
“Toda política é coletiva, não é possível fazer política sem mobilizar as coletividades, sem construir canais de diálogos, de articulação, de proposições. A forma como a política se estabeleceu no nosso país não expressa tanto as coletividades, porque existe uma interferência de uma condução do poder econômico, de determinados setores privilegiados e uma concepção elitista da política. Todas essas interferências vão esvaziando o conceito da política no seu sentido mais profundo”, explica o professor.
Ele pontua ainda que o seu mandato está em construção com uma diversidade de pessoas, buscando dialogar, aprender com as comunidades e movimentos sociais, e assim, representá-los. Além de proposição de projetos, há um diálogo com os grupos para avaliar a efetividade das leis aprovadas. Segundo o vereador, nesta proposta existe uma busca de mudança de postura tanto do agente político, que assume o compromisso de ouvir a população, quanto dos eleitores, convidados a participar ativamente da construção da política ao longo do mandato.
Na grande São Paulo, grupos buscam conquistar um espaço de voz dentro da Câmara Municipal. Encabeçados por mulheres, duas das propostas de mandatos coletivos concorrendo nestas eleições, na maior cidade do país visam dar voz a grupos invisibilizados. Liderados por iniciantes na corrida eleitoral, estas campanhas englobam dois formatos diferentes de candidaturas coletivas.
O primeiro é o Juntas (Psol), formado por três mulheres negras, representantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), de diferentes regiões periféricas de São Paulo. Jussara, Débora e Tuca trabalham há quase uma década no MTST e agora embarcam na corrida eleitoral para compartilhar um mandato na Câmara de Vereadores. As três propõe levar a voz da periferia para o espaço de decisão, mantendo o diálogo com as suas comunidades e buscando romper com o “padrão elitista”.
Elas explicam que a construção de uma campanha coletiva é também um processo de “conscientização política”, de estimular participação das comunidades no processo de decisão e elaboração de políticas públicas.
“Uma parte de todo o retrocesso que a gente sofreu e do sentimento de antipolítica é também consequência do total abandono da esquerda do trabalho de base e a gente quer que o nosso trabalho dentro do MTST permaneça dentro deste mandato”, explica Jussara. As representantes do grupo apontam que a proposta de mandato coletivo do Juntas tem atuado em coletividade desde a concepção da campanha até a definição do formato do mandato.
Também na maior capital do país, a promotora legal popular Rute Alonso (Psol) representa a Coletiva Nós Mulheres trazendo uma proposta baseada em fundamentos feminista, antirracista, em defesa dos direitos da população LGBTIQIA+ e em defesa do serviço público. Com a proposta de “gabinete aberto e pé na rua”, a iniciativa de Rute visa consultar a sociedade civil na construção de políticas públicas.
“O processo de construção da política pública tem que ser junto com o destinatário da política. A gente pensa na coletividade que vai compor a mandata para a gente conseguir estar com o gabinete aberto e pé na rua, construindo junto com a população”, explica. Entre os entraves da construção deste tipo de campanha a candidata aponta que se deparar com um desânimo das pessoas em relação à política tem sido um desafio importante.
“Existe ainda uma tristeza muito grande das pessoas em relação ao próprio processo eleitoral. A gente encontra pessoas muito desanimadas, desamparadas e desinteressadas”, explica.
No interior de Goiás, a cidade de Alto Paraíso foi cenário de uma das primeiras experiências de mandato coletivo do país. A ideia gerou frutos como o grupo Permacultural, encabeçado por Henny Freitas (Rede), candidata à vereadora na cidade.
Formado por duas mulheres e dois homens, o grupo apresenta uma proposta de mandato coletivo que traga para a política uma visão holística da cidade. Com a bandeira ligada ao meio ambiente, o grupo se baseia em fundamentos da permacultura como inspiração para criar eixos temáticos, que englobam questões sobre sustentabilidade, direitos das mulheres, economia e outros.
“O papel do vereador é além de fiscalizar o trabalho da prefeitura, ter uma visão holística da cidade ”, explica Henny.
>Campanhas feministas ocupam as redes para vencer sub-representação no poder