A polarização política expressa nas urnas, nas ruas e nas redes sociais chegou de vez ao Judiciário. O vaivém judicial em torno da soltura ou não do ex-presidente Lula, que durou cerca de 10 horas nesse domingo (8), pôs em xeque a isenção do juiz Sérgio Moro e de seu novo antagonista, o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Os dois tiveram sua atuação questionada por especialistas e podem ter complicações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que analisa a conduta dos magistrados.
Em comum, a crítica de que extrapolaram suas competências e agiram de acordo com interesses políticos. Desde que centrou fogo em figuras importantes do Partido dos Trabalhadores, como o ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro João Vaccari Neto e, principalmente, o ex-presidente Lula, Moro é tratado por petistas como inimigo, um magistrado a serviço do PSDB, cujo maior intuito é tirar o ex-presidente da disputa presidencial.
Essa crítica foi reforçada pelo PT nesse domingo, quando o juiz federal interrompeu suas férias, em Portugal, para se insurgir contra a decisão de Favreto de libertar Lula. Moro contestou a decisão do desembargador, que está acima dele na estrutura hierárquica do Judiciário, e acionou o também desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do processo que resultou na prisão de Lula, contra a ordem de soltura do ex-presidente.
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Gebran Neto derrubou a decisão do colega do TRF-4, alegando que ele não tinha poder para rever, sem a existência de um fato novo, uma decisão tomada por órgão colegiado. Favreto ignorou a posição do colega, alegando que o fato novo era a participação de Lula na eleição, e voltou a ordenar que Lula fosse solto. O presidente do tribunal, Carlos Eduardo Thompson Flores, entrou em ação para derrubar o habeas corpus concedido em favor do petista e devolver o pedido a Gebran Neto.
Segundo juristas, um magistrado de primeiro grau, como Moro, não tem legitimidade para questionar a competência de um desembargador, a exemplo de Favreto. Apenas o Ministério Público poderia contestá-la. Além disso, caberia à Vara de Execuções Penais, onde o caso está a cargo da juíza Carolina Moura Lebbos, cumprir a ordem de soltura.
A interferência de Moro no episódio abre margem para a defesa do petista contestar sua eventual falta de isenção para conduzir os processos contra o ex-presidente. Advogados ligados ao PT já preparam ações contra o juiz paranaense por insubordinação
Decisão de ex-petista
Personagem novo na Lava Jato, Favreto é um velho conhecido na política partidária do PT. Filiado ao partido por 19 anos, integrou os governos Lula e Dilma. Antes de virar desembargador, coordenou a assessoria jurídica do então prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro (PT). Na administração federal, atuou como assessor no Ministério da Justiça quando Genro era o ministro.
Também ocupou cargos de chefia na área jurídica na Casa Civil, sob as ordens de José Dirceu e Dilma Rousseff, na Secretaria de Relações Institucionais e no Ministério do Desenvolvimento Social. Foi nomeado desembargador por Dilma após ser o mais votado em lista tríplice da Ordem dos Advogados do Brasil. Só então ele se desfiliou do PT.
Para o desembargador, como a condenação ainda não foi confirmada pelos tribunais superiores, Lula está sendo prejudicado em seu direito de ir e vir e tendo seus direitos políticos cassados, não podendo fazer atos de campanha. Se o argumento de Favreto prosperasse, todo político preso após condenação em órgão colegiado que anunciasse sua pré-candidatura a um cargo político poderia utilizar esse argumento para deixar a cadeia.
O pedido de liberdade do ex-presidente Lula foi apresentado por três deputados federais do PT: Wadih Damous (RJ), Paulo Teixeira (SP) e Paulo Pimenta (RS). O documento foi protocolado às 19h32 da sexta-feira (6) – 32 minutos após o início do plantão de Favreto. Se tivesse sido apresentado antes das 19h, só seria analisado depois do plantão, que terminou às 11h desta segunda-feira, já pelo desembargador Gebran Neto. A primeira ordem para soltar Lula foi assinada às 9h05 desse domingo.
Reflexo do Supremo
A confusão que se estabeleceu entre o primeiro e o segundo grau da Justiça Federal bem pode ser compreendida como reflexo dos vaivéns do Supremo Tribunal Federal (STF). Na mais alta corte do país, a polarização se dá entre os que defendem punição mais rigorosa para os alvos da Lava Jato, concentrados na Primeira Turma, e os que veem excessos na operação, mais notórios na Segunda Turma, na qual o relator, Edson Fachin, se encontra praticamente isolado.
O clima no tribunal piorou nos últimos meses com bate-boca público entre os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes e a decisão da presidente da corte, Cármen Lúcia, de não pautar a possibilidade de revisão do início de cumprimento de pena a partir de condenação em segunda instância.
Como mostrou o Congresso em Foco, em pouco mais de um mês o ministro Gilmar Mendes, mais ferrenho crítico da Lava Jato, determinou a soltura de 22 pessoas presas em desdobramentos da megaoperação. Entre elas, o engenheiro Paulo Vieira de Souza, apontado como operador do PSDB em São Paulo. Ele foi solto nesse período em duas oportunidades por Gilmar. Ex-presidente da Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S/A) Paulo Vieira tinha R$ 113 milhões em contas não declaradas na Suíça.
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“Impessoal”
Em nota divulgada ontem, Cármen Lúcia evitou citar nomes, mas deu um recado que pode ser interpretado como extenso tanto a Moro quanto a Favreto. Disse que a democracia brasileira é “segura” e que os órgãos judiciários competentes de cada região devem “atuar para garantir que a resposta judicial seja oferecida com rapidez e sem quebra da hierarquia”.
“A Justiça é impessoal, sendo garantida a todos os brasileiros a segurança jurídica, direito de todos. O Poder Judiciário tem ritos e recursos próprios, que devem ser respeitados. A democracia brasileira é segura e os órgãos judiciários competentes de cada região devem atuar para garantir que a resposta judicial seja oferecida com rapidez e sem quebra da hierarquia, mas com rigor absoluto no cumprimento das normas vigentes”, disse Cármen.
O ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence, que advoga para o ex-presidente Lula, classificou como “patéticas e tragicômicas” as cenas protagonizadas por Sérgio Moro e pelos desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores, que contestaram a ordem do magistrado Rogério Favreto de soltar o petista.
“Vivi a juventude e boa parte da vida adulta sob a ditadura militar. Nunca vi um juiz de primeira instância desobedecer a uma ordem judicial (como fez Moro)”, declarou à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo.
Ele disse que se espantou também com a notícia de que o presidente do TRF-4, Thompson Flores, telefonou para a Polícia Federal para pedir que a ordem fosse descumprida até que ele mesmo decidisse. “Vi general vacilar diante de uma ordem do STF, mas acabar cumprindo. Acho inacreditável que, num regime formalmente democrático, presenciemos cenas tão patéticas e tragicômicas.”
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