As complicações jurídicas para o ex-presidente Jair Bolsonaro após as ações da Polícia Federal (PF) contra militares da cúpula de seu governo podem se agravar de forma séria quando houver a conclusão do inquérito decorrente da Operação Tempus Veritatis. A descoberta de que o antigo mandatário tinha conhecimento e participação na elaboração da minuta de golpe de Estado encontrada em 2023 na casa do ex-ministro Anderson Torres e reencontrada em outra versão na sede do PL é vista por diversos juristas como o elo entre Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro, o que pode resultar em sua prisão.
De acordo com a Polícia Federal, conforme consta da decisão judicial que autorizou as ações dessa quinta-feira (8), Bolsonaro teria recebido de seu assessor especial para assuntos internacionais, Filipe Martins, uma versão inicial da minuta de decreto que estabelece uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para revogar o resultado das eleições de 2022. Em resposta, o presidente solicitou algumas mudanças na redação, bem como a retirada de parte dos alvos de mandados de prisão.
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De acordo com Miguel Reale Jr, ex-ministro da Justiça e membro da comissão que revisou a parte geral do atual Código Penal, a reação de Bolsonaro o coloca como coautor de uma tentativa de golpe de Estado. “Ele se demonstra, efetivamente, como administrador. Ele é ali um incentivador e um organizador de um golpe”, aponta o jurista.
A advogada criminalista e mestra em direito penal pela PUC-SP Jacqueline Valles é categórica ao dizer que a conduta citada no inquérito inclui Bolsonaro entre os envolvidos na tentativa de golpe de Estado. “Havia ali um crime em andamento, e há uma participação concreta [do presidente] analisando a minuta, revendo os autos, verificando se estava tudo conforme sua vontade. Isso se soma a todos os atos praticados por aqueles que cometeram crimes contra as instituições democráticas”, ressaltou.
Os dois criminalistas consideram os ataques de 8 de janeiro de 2023 como o momento em que se efetivou o crime, restando descobrir se Bolsonaro e seus aliados próximos atuaram como mandantes diretos ou como incitadores de uma massa que, a despeito de agir por iniciativa própria, teria sido motivada por eles. Os dois casos resultam em condenação. “Aquela minuta é parte do que chamamos de ato preparatório para o crime”, acrescenta Jacqueline.
Miguel Reale Jr chama atenção para a forma com que Bolsonaro teria tratado do assunto, conforme consta do trecho citado na decisão que autorizou a última leva de ações da PF. “Ele chega a dizer aos ministros ‘vocês dependem de mim e eu dependo de vocês, nós vamos agir, não vamos ficar parados’ em um diálogo transcrito pelo Mauro Cid [antigo ajudante de ordens]. Ele se demonstra como um organizador do bando criminoso”. Na reunião em questão, Bolsonaro reforçou aos seus auxiliares a tese de que teria vencido as eleições.
O fato de a minuta não ter resultado em um decreto publicado em diário oficial, para o ex-ministro, não corrobora em favor de Jair Bolsonaro. “O fato delituoso está no 8 de janeiro. A minuta demonstra a participação ativa dele nesse processo. Ele não desconhecia que a trama estava montada, e que tudo estava preparado, inclusive com coronéis nas Forças Especiais do Exército para um golpe”.
O advogado Pierpaolo Bottini, professor-livre do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP, se soma aos demais na tese de que não há muita margem para o ex-presidente escapar de uma condenação nesse caso.
“Se realmente ficar comprovado que o presidente discutiu um decreto que executa um golpe de Estado, que ele participou dessa discussão, que participou de debates com ministros e mesmo oficiais das Forças Armadas ao redor de uma minuta de golpe de Estado, isso é muito grave, e é previsto no Código Penal. Se for confirmado, vai ficar claro que os atos de 8 de janeiro não eram uma mera baderna, mas uma das facetas de algo maior”, avalia Bottini.
Sem prisão preventiva
Se por um lado, há consenso de que as chances de Bolsonaro sofrer uma condenação caso se confirme as suspeitas levantadas pela PF, do outro, os juristas consultados consideram pouco provável que, no curto prazo, possa ser emitido um mandado de prisão preventiva, tal como aconteceu com outros investigados desde os atos de 8 de janeiro, como Anderson Torres ou o próprio presidente do PL, Valdemar Costa Neto, após a descoberta de que este portava uma arma ilegalmente.
“Eu não acredito que essa minuta, em si, faça com que a prisão ocorra antes da sentença. A prisão necessariamente vai ocorrer, mas acredito que apenas após a condenação”, antecipou Jacqueline Valles.
“A prisão preventiva, para que aconteça, não basta que o crime investigado seja grave. É preciso de uma demonstração de que, no momento atual, essa pessoa ou está atrapalhando as investigações ou tem a possibilidade de se evadir do país. Nesse momento, o ministro se satisfez com a apreensão do passaporte”, explicou Pierpaolo Bottini.
Apesar de considerar pequena a chance de uma restrição de liberdade de Bolsonaro em curto prazo, Jacqueline Valles aponta para a tendência de piora na situação do antigo chefe de governo diante da Justiça. “Quanto mais a PF investiga, mais ela consegue saber o quanto ele estava inserido de forma atuante nesses crimes. Isso fortalece a denúncia quando chegar ao Ministério Público”.