Procuradores da Operação Lava Jato driblaram a lei para obter informalmente dados sigilosos da Receita Federal nos últimos anos, segundo reportagem publicada pela Folha de S.Paulo em parceria com o site The Intercept Brasil. Diálogos obtidos pelo site indicam que integrantes da força-tarefa em Curitiba buscaram informações da Receita sem requisição formal e sem que a Justiça tivesse autorizado a quebra do sigilo fiscal das pessoas que queriam investigar.
Segundo a reportagem, os procuradores contaram com a cooperação do auditor fiscal Roberto Leonel, que chefiou a área de inteligência da Receita em Curitiba até 2018 e assumiu a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) no governo Jair Bolsonaro, após ser escolhido pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ex-juiz da operação.
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Conforme as mensagens, os procuradores usaram esse expediente com frequência no começo de 2016 durante as investigações sobre as reformas executadas por empreiteiras no sítio de Atibaia (SP) cuja propriedade é atribuída pela acusação ao ex-presidente Lula. O caso resultou na segunda condenação do petista na Justiça.
De acordo com a Folha e o Intercept, foram pedidas informações sigilosas sobre uma nora do ex-presidente, o caseiro do sítio, o patrimônio de seus antigos donos e compras que a ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva fez na época.
Sítio de Atibaia
Um dos alvos do coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol, foi o caseiro Elcio Pereira Vieira, conhecido como Maradona. Em fevereiro de 2015 Dallagnol sugeriu aos colegas que pedissem a Leonel que puxasse as declarações do Imposto de Renda do empregado do sítio. “Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público (comissionado)”, disse. “Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal.”
PublicidadeMoro autorizou a quebra do sigilo fiscal do caseiro uma semana depois. No processo que trata do sítio, não há nenhuma informação do Fisco sobre ele nem sinal de que a hipótese de Dallagnol tenha sido checada.
Segundo a reportagem, as mensagens examinadas não permitem saber se Leonel atendeu aos pedidos, mas sugerem que o auditor era o primeiro a ser consultado sempre que a força-tarefa recebia dicas ou não tinha informações suficientes para pedir a quebra de sigilo à Justiça.
Em setembro de 2016, o procurador Athayde Ribeiro Costa informou aos colegas que pedira a Leonel para averiguar se os seguranças de Lula tinham comprado uma geladeira e um fogão em 2014 para equipar o tríplex que a empreiteira OAS reformou para o petista em Guarujá (SP).
O procurador enviou ao auditor da Receita nomes de oito seguranças que trabalhavam para Lula e duas lojas. Não se sabe se a verificação foi feita, mas no processo que tratou do tríplex, que levou à primeira condenação de Lula, ficou provado que a OAS comprara os eletrodomésticos, não ele.
Quebra de sigilo
A legislação brasileira permite que o Ministério Público peça informações à Receita durante investigações, mas é necessário que seus requerimentos sejam formais e fundamentados, dizem advogados consultados pela Folha. Em casos de pedidos muito abrangentes, afirmam, é preciso obter autorização da Justiça.
Ainda de acordo com a reportagem, auditores da Receita têm o dever de comunicar indícios de crimes que encontrem ao fiscalizar contribuintes, mas existem limites para o compartilhamento dos dados, como dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) indicaram recentemente.
Em julho, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu investigações baseadas em informações do Coaf, incluindo a que tem como alvo o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente. Para Toffoli, órgãos como o Coaf e a Receita só podem compartilhar sem aval da Justiça dados genéricos, sem detalhes sobre movimentações financeiras.
No início deste mês, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu investigações conduzidas pela Receita sobre 133 contribuintes, incluindo as mulheres dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Para Moraes, a Receita selecionou seus alvos sem ter motivo razoável para investigá-los.
Agora no comando do Coaf, Roberto Leonel criticou a decisão de Toffoli publicamente, o que levou Bolsonaro a determinar sua substituição no órgão. O governo decidiu transferir o órgão, hoje sob alçada do Ministério da Justiça, para o Banco Central.
Troca permitida
Em resposta à Folha, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e a Receita Federal afirmaram que a troca de informações entre elas é permitida pela legislação e ocorre dentro de limites legais que respeitam a proteção do sigilo fiscal dos contribuintes. Segundo o jornal, a Receita e a força-tarefa não se manifestaram sobre o caráter informal das consultas.
De acordo com os procuradores, a cooperação com a Receita é “autorizada e incentivada” pela Lei das Organizações Criminosas e pela Lei Orgânica do Ministério Público da União, além de notas da Advocacia-Geral da União e normas internas da Receita que dispõem sobre o acesso a informações sigilosas.
O Manual do Sigilo Fiscal da Receita, por exemplo, diz que o órgão deve fornecer informações sigilosas aos procuradores sempre que houver requisição feita diretamente, mas deixa claro também que o acesso amplo e indiscriminado a seus bancos de dados não é permitido.
A força-tarefa reafirmou que não reconhece as mensagens obtidas pelo Intercept, que começou a divulgá-las em junho. “O material é oriundo de crime cibernético e tem sido usado, editado ou fora de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à realidade”, disse.
“A equipe reitera que pauta suas investigações de forma técnica e de acordo com a lei e a ética”, acrescentou.
A Receita Federal afirmou que o Ministério Público Federal “tem o poder de requisitar informações protegidas por sigilo fiscal”, e que a cooperação de seu escritório de inteligência em Curitiba respeita regras previstas no Código Tributário Nacional, que exige procedimentos formais para troca de informações. O presidente do Coaf, Roberto Leonel, não quis se manifestar.
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