Na República todos somos iguais perante a lei. Como morreu a aristocracia, todos podemos ser investigados. E se existe alguém nas elites do poder que deve sê-lo a fundo é Gilmar Mendes. Não pelos seus ataques à Lava Jato e aos seus operadores – “todos cretinos”, já disse várias vezes o ministro –, mas pela frouxidão ética com que desempenha sua função na corte máxima da Nação.
Desde logo, é o ministro que mais fala dos seus processos na imprensa. Que mais antecipa votos pelos microfones midiáticos, quando se sabe que juiz deve falar “nos autos”. O Código de Ética da Magistratura não representa limites para suas espontâneas e instintivas subjetividades.
Joaquim Barbosa o enquadrou como um sucessor do senhor de engenho, possuidor de capangas. Seu personalismo herdado das tradições ibéricas, tal como tratadas por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, é acentuadíssimo.
Nele se vê uma aguda tensão entre nosso passado e o presente, posto que a velha ordem colonial, que teima em não ser varrida do nosso cenário, continua marcando a vida das nossas instituições.
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A cultura da personalidade, a valorização extremada da pessoa, sua soberba autonomia frente aos semelhantes, o distancia dos valores e normas coletivos, de respeito civilizado às regras gerais, objetivas e impessoais. Esse é um legado da nobreza, da ética dos fidalgos.
A Receita Federal, a partir dos dados e documentos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que tem como sócio Gilmar Mendes, está analisando as variações patrimoniais dele e da sua esposa, Guiomar. A evolução patrimonial de funcionário público deveria ser algo trivial e indiscutível.
Desde as primeiras diligências o ministro orientou os gestores do instituto a fornecerem toda a documentação necessária à Receita (ver Mônica Bergamo). As diligências fiscais caminhavam normalmente quando houve vazamento da operação.
Um relatório de maio de 2018 menciona uma variação patrimonial não explicada de quase R$ 700 mil, em nome de Guiomar, contra quem haveria “indícios de lavagem de dinheiro”. O propósito da operação seria identificar “focos de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência” (Veja-Radar).
Em reação ao vazamento do relatório, Gilmar pediu investigação contra seus detratores na Receita. Quem vazou? Por que vazou? Concluiu: “O vazamento seria um abuso de poder para fins escusos, concretizado por meio de uma estratégia deliberada de ataque reputacional a alvos pré-determinados”.
Nenhum vazamento nesta República jamais teve distinta natureza, porque por detrás dele está a disputa pelo poder. Faz parte do jogo, muitas vezes sujo, das elites do poder. O seu caso não seria diferente.
Se Gilmar e Guiomar foram padrinhos de casamento da filha do empresário Barata (do Rio de Janeiro), é evidente que ele não podia julgar o seu habeas corpus, liberando-o do cárcere. É pessoa com quem ele janta em Portugal! A sensação que ficou para a população foi a de que “tirou o amigo da cadeia”. Aos inimigos a lei, aos amigos os favores.
Há total incompatibilidade ética e moral num julgamento desse tipo. Sua suspeição foi levantada pela Procuradoria-Geral da República. O processo demorou tanto nas gavetas deste órgão, que perdeu seu objeto.
A Revista Crusoé mostrou que Gilmar Mendes julgou vários processos das empresas patrocinadoras dos seus eventos, sobretudo em Lisboa. Ora, no instante em que alguém patrocina um evento do ministro, é claro que ele fica impedido de julgar qualquer processo desse patrocinador.
Mesclam-se aqui interesses públicos com privados. Governa-se ou age-se como se o serviço público fosse de natureza particular. Essa é a característica essencial da belíssima alegoria de Sérgio Buarque quando inventou o tal de “homem cordial”, que é quem leva para dentro do Estado toda sua tradição familiar patriarcalista e que se posiciona no âmbito público como se tivesse administrando suas propriedades privadas.
Também se noticiou que Gilmar julgou habeas corpus de clientes do escritório do qual é sócia sua mulher. Fica sempre a suspeita de tratamento privilegiado aos íntimos, aos protegidos, aos afilhados. E nenhuma investigação é instaurada para se aquilatar a veracidade ou não dessas suspeitas. O Supremo continua sangrando em sua credibilidade, e nada se faz para impedir o sangramento.
A verdade é que em relação aos seus amigos mais chegados (Aécio, José Serra, com quem compartilha jantares em sua casa) aconteceram alguns estranhos arquivamentos de investigações em andamento. Mais: de ofício, sem pedido do Ministério Público. A violação ao princípio da titularidade da ação penal resultou evidente. Qual a percepção da sociedade? Inquéritos de amigos, arquive-se tudo!
Por tudo que acaba de ser dito, Gilmar, ao longo dos últimos anos, foi se convertendo em objeto de muito ódio, sobretudo nas redes sociais. Sua reputação no cargo de juiz é baixíssima, como mostram as pesquisas.
Chegou a hora de o ministro experimentar uma investigação profunda, que no Brasil é coisa que normalmente somente acontece com os não privilegiados das elites do poder. Isso se justifica mais ainda depois daquele empréstimo de milhões (mais de 25 milhões) no Bradesco, com taxa de juros mais benéfica que 99% dos contratos feitos diariamente pelo banco.
Taxa de “pai para filho”. Taxa que nenhum cliente especial desfruta, salvo quando entra em campo a tradição patriarcal e personalista da velha ordem, fundada no amiguismo, nas relações íntimas e próximas, típicas do cordialismo vigente na tradição ibérica. O problema, que fique claro, não é o empréstimo, é a taxa!
O mais grave: a revista Crusoé noticiou que Gilmar julga processos do Bradesco normalmente! Qual brasileiro não conclui que tudo isso deve ser investigado a fundo? O que está em jogo é a independência de um poder, de uma Corte.
Todos temos interesse em saber se está sendo ou não aniquilada a imparcialidade da magistratura. Toda a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu vai por terra quando uma nação não conta com juízes éticos, decentes e imparciais. Não há Estado Democrático sem esses valores.