Ultrapassa o ridículo e chega à bizarrice o conjunto de tentativas absolutamente absurdas tanto de Bolsonaro como de seus familiares, além de admiradores e advogados, de inverter a ordem natural das coisas e fazer acreditar que, em vez de beneficiário da armação do golpe descoberto pela Polícia Federal, Bolsonaro seria vítima e até teria se oposto a ele.
É sabido que advogados têm muitas vezes que pôr a criatividade a serviço da defesa de seus clientes. Só que criatividade tem limite. De nada adianta inventar uma “narrativa” – a palavra da moda – se ela não se sustenta em pé do ponto de vista da verossimilhança. Em outubro do ano passado escrevi uma coluna intitulada “Então tá, eu acredito: quem tentou dar o golpe foi o Lula”, no qual apontava que deputados como o bolsonarista Magno Malta tentou descredibilizar o relatório da senadora Eliziane Gama (PSD-MA) na CPMI que analisou os atos democráticos do 8 de janeiro e apontou Bolsonaro como mentor dos ataques. Malta argumentou que Lula é que teria criado uma “trama de incitação ao vandalismo” para “tirar proveito dos acontecimentos”. Logo depois da primeira insanidade, Malta completou com uma frase que nem Dias Gomes colocaria na boca de Odorico Paraguassu: “as ações dos vândalos foram apenas ações democráticas num Estado de Direito”. E eu acrescento: “Anote aí, seu Dirceu, e mande publicar nas folhas que o povo acredita em tudo! Em tudo, seu Dirceu, em tudo!”
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Agora é o advogado de Bolsonaro, Paulo da Cunha Bueno, quem se apresenta como o bobo-da-corte ao adotar como estratégia de defesa do ex-presidente atribuir a militares a responsabilidade pelo plano golpista para impedir a posse de Lula. Segundo ele, Bolsonaro não se beneficiaria da trama golpista como apontou a PF, pois o plano previa a criação de um gabinete de crise do qual Bolsonaro não faria parte. Bolsonaro seria “traído” por membros das Forças Armadas, incluindo aí dois de seus mais fiéis ministros, o do Exército e o da Aeronáutica. Então tá, eu, a torcida do Flamengo e a do glorioso Botafogo acreditamos. Tá certo, tá direito…
Se for atrás da ficha desse advogado a gente fica sabendo que ele é monarquista, admirador de militares e defensor do armamentismo da população, chegando a integrar o conselho da empresa de armas Taurus. O mal do monarquismo é de família. Durante a constituinte que produziu a atual Constituição, eu cheguei a entrevistar o deputado Cunha Bueno (PPB-SP), parente dele, que propôs a adoção da monarquia. E sabe com quais argumentos? De que o brasileiro adora uma monarquia, e uma “prova” seria a quantidade de lojas com títulos como “Rei das Panelas”, “Império das Bombas” e vai por aí. Chegou a publicar um livro com o título de “A solução é o rei”. Dá pra perceber que o advogado de Bolsonaro tem na família a quem puxar…
Mas a ridicularia não para por aí. O próprio Bolsonaro revelou que buscou “todas as medidas possíveis dentro das quatro linhas da Constituição”, segundo ele para “resolver o problema da insatisfação do Brasil”. Ou seja: respeito ao resultado da eleição, nada. Mas procurar meios para driblar o resultado das urnas, tudo bem.
Alguns “analistas” de direita tentam emplacar a versão de que Bolsonaro não apenas não aderiu ao golpe como até se opôs aos que o tramaram. Então o golpe era pra derrubar… Bolsonaro? Vá ser criativo assim lá na… Os mesmos “analistas” garantem que Bolsonaro não quis fazer nem sustentou o projeto do golpe. Então, tá: o trabalhão da PF que resultou num relatório consistente de mais de 800 páginas e que indiciou Bolsonaro é lixo puro? Então é melhor fechar logo essa PF, né não?
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) foi além e peitou o ministro Alexandre de Moraes, do STF: “Ou a gente aprova a anistia ampla, geral e irrestrita para todo mundo e algum parlamentar faz uma emenda para incluí-lo (o ex-presidente Bolsonaro) ou a gente vai cassar o Alexandre de Moraes”. Flávio Bolsonaro foi o mesmo que afirmou que pensar em matar não é crime.
Só pra rir um pouco, vamos rever algumas reações. De Temer, que entende de golpes porque foi beneficiário de um deles: “Não há riscos para a democracia nem há clima para golpe”. Do senador Ciro Nogueira, presidente do PP: “Há coisas a respeito das quais tenho certeza e uma delas é sobre a inocência de Bolsonaro”. Só não explicou a razão dessa certeza. Enquanto o governador do Rio, Cláudio Castro, limitou-se a dizer que havia pessoas fazendo baderna e que essas “têm que ser punidas”.
Num ótimo artigo publicado nesta segunda-feira simultaneamente no Correio Braziliense e no Estado de Minas, o jornalista Luiz Carlos Azedo alertou para o mal de uma anistia ampla, geral e irrestrita como a defendida por Flávio Bolsonaro, lembrando que os torturadores e assassinos do deputado Rubens Paiva, cuja história foi contada no belo filme Ainda estamos aqui, que concorre ao Oscar, estão todos – todos – em liberdade, depois de um conjunto amplo de atrocidades que praticaram e pelas quais estavam presos. Aplicaram torturas abjetas, execuções sumárias, interrogatórios violentos e assassinatos com esquartejamento de corpos e desaparecimento de presos políticos, como ocorreu com Rubens Paiva.
Tais fatos não foram inventados, não foram produzidos pelo delírio criativo de um advogado ou admirador do regime militar. Servem apenas para provar e comprovar que anistia para assassinos é o melhor caminho para a impunidade e a garantia de volta à impunidade de sempre, uma das marcas mais terríveis de nossa história. E esse caminho para a impunidade não tem nada de bizarro, de absurdo nem engraçado. É, apenas, trágico. Trágico e amedrontador.
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