Há quase um ano e meio a Câmara segura uma proposta de emenda à Constituição que torna imprescritível o crime de estupro. Isso significa que o crime poderá ser punido mesmo muitos anos depois de cometido. Na prática, se estivesse em vigor, a norma poderia alcançar até os mais antigos casos atribuídos ao médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, preso nesse domingo (16) em Goiás, acusado de estupro e posse sexual mediante fraude.
O texto foi aprovado por unanimidade em 9 de agosto de 2017 pelo Senado, onde recebeu 61 votos favoráveis. Enviado à Câmara no dia 17 daquele mês, segue engavetado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ). A líder do MDB no Senado, Simone Tebet, que relatou a PEC ano passado, cobra providências dos deputados.
“Muitos casos denunciados contra o João de Deus e contra outros, se comprovados, estão prescritos. Cruel, injusto. O Senado já fez sua parte. A Câmara precisa votar em fevereiro, após o fim da intervenção federal no Rio de Janeiro e em Roraima”, diz a senadora. Por se tratar de uma mudança constitucional, a proposta só pode ser apreciada em plenário após o fim das duas intervenções – a primeira foi iniciada em novembro e a segunda na semana passada. Mesmo com as intervenções, outras PECs avançaram semana passada em comissões, como a da reforma tributária e a que estabelece o fim do foro privilegiado.
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Até 20 anos
A proposta (PEC 353/17), de autoria do senador Jorge Viana (PT-AC), modifica a Constituição para tratar o estupro, juntamente com o racismo, como crime “inafiançável e imprescritível”. Atualmente, o tempo de prescrição varia de acordo com o tempo da pena, que é diferente em cada caso. Esse tempo de prescrição pode se estender até 20 anos. Para estupro de vulnerável, a contagem só começa após a vítima fazer 18 anos.
O relator na CCJ, deputado Marcos Rogério (DEM-RO), deu parecer pela admissibilidade (ou seja, foi considerada constitucional) ainda em novembro do ano passado. O texto, porém, não foi incluído na pauta. Depois de ser aprovada pela CCJ, a proposta precisa ser examinada por uma comissão especial a ser criada para analisar seu mérito. Só então estará pronta para o plenário, onde exigirá o apoio de pelo menos 308 dos 513 deputados, em dois turnos de votação. Se não sofrer alterações, o texto poderá ser promulgado. Do contrário, terá de voltar ao Senado.
Abusos em série
Em pouco mais de uma semana, o Ministério Público e a polícia já receberam mais de 300 depoimentos de mulheres que denunciaram ter sofrido abuso sexual durante atendimentos espirituais. Algumas contaram, inclusive, que eram menores de idade na época. Dalva Teixeira, de 49 anos, filha do médium, diz ter sido estuprada por ele dos 10 aos 14 anos. Vários desses crimes, conforme os investigadores, prescreveram devido à atual legislação. Inicialmente, ele é investigado por 15 casos.
“A polícia civil está analisando caso a caso e está se concentrando na questão do abuso [sexual]. O grande desafio é provar essa situação. A Polícia Civil persiste focada na formação da prova. Tem muitos crimes que estão prescritos, mas vítimas que comparecem atuarão como testemunha”, afirma o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes.
João de Deus faz atendimentos mediúnicos na Casa Dom Inácio de Loyola desde a década de 1970 na cidade de Abadiânia, a cerca de 90 km de Goiânia e a 120 km de Brasília. As primeiras acusações contra ele foram divulgadas pelo programa Conversa com Bial, da TV Globo, e pelo jornal O Globo, no último dia 8. O médium é conhecido internacionalmente e já atendeu diversas personalidades brasileiras e estrangeiras do mundo.
“Justiça da Terra”
Ele teve a prisão decretada na última sexta-feira após os investigadores identificarem movimentações de R$ 35 milhões em suas contas bancárias. Os policiais temiam que ele pudesse fugir. João se entregou na tarde desse domingo e foi levado para Goiânia. A defesa do médium diz que ele é inocente.
“Na hora em que eu fiquei sabendo, eu me entrego à justiça divina e a Justiça da Terra, que eu prometi, e estou indo agora me entregar, porque eu fiquei sabendo pelo meu advogado que está aqui presente, o doutor Toron”, disse João de Deus à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S. Paulo minutos antes de se entregar aos policiais.
“O senhor João nega essas acusações. Nós, com o tempo, poderemos demonstrar o que aconteceu”, afirma o advogado Alberto Toron, que defende o médium. “[Ele deu] Mostras claras de que respeita a Justiça, respeita o judiciário”, acrescenta. A defesa vai entrar com recurso nesta segunda-feira contra a prisão.
Subnotificação
Autor da PEC que torna o estupro crime imprescritível, o senador Jorge Viana ressalta que, segundo especialistas, no máximo um terço dos estupros é notificado. Essa subnotificação ocorre porque muitas vítimas, num primeiro momento, por ameaças e constrangimento, não têm condições de denunciar a violência, muitas vezes praticadas por pessoas próximas a elas. A imprescritibilidade, na avaliação do senador, evitará que o transcurso do tempo impeça a investigação e o processamento e julgamento de quem pratica esse ato de violência.
“Se dez anos depois, 15 anos depois, uma mulher que foi vítima do estupro criar coragem, reunir as condições para fazer a denúncia, que essa denúncia venha. É uma necessidade que esse crime seja assim, tratado dessa maneira”, alega o autor da proposta.