O pacote anticrime entra em vigor na próxima quinta-feira (23), sem um de seus artigos mais polêmicos: o que cria o juiz de garantias. A implementação desse dispositivo foi adiada pelo ministro Dias Toffoli em função dos questionamentos sofridos pelo juiz de garantias desde que ele foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. O adiamento, contudo, não foi encarado como uma derrota por quem defende o projeto, contestado pelo ministro Sergio Moro. Ao contrário: magistrados dizem que o adiamento é até benéfico, pois permite que o sistema judicial se adapte a essa nova realidade e tenha condições de implementar um juiz de garantias de fato eficiente. A leitura é que é melhor esperar seis meses do que implantar algo de forma açodada, que pode ser questionado mais à frente.
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O juiz de garantias não estava no texto original do pacote anticrime. Mas entrou no projeto do ministro da Justiça, Sergio Moro, através de uma emenda apresentada pelo deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ). E foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no fim do ano passado. A sanção levou o presidente a ser chamado de traidor pelos apoiadores do seu ministro da Justiça e também foi criticada por Moro, pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJufe). Eles diziam que o sistema judicial não tem condições técnicas ou financeiras de aderir ao juiz de garantias já que esse dispositivo prevê a atuação de dois juízes no mesmo processo judicial – um para fazer a instrução processual e outro para dar a sentença.
Quem defende o instrumento afirmou, contudo, que era possível se adaptar. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Juízes para a Democracia (AJD) argumentam que o juiz de garantias garante a isenção e a imparcialidade das decisões judiciais e vale o esforço. Por isso, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Dias Toffoli, tomou uma decisão ponderada em relação ao juiz de garantias. Ele disse, nessa semana, que o dispositivo não é inconstitucional e deve ser implementado no Brasil, mas determinou que essa implementação só ocorra daqui a seis meses, para que os tribunais estudem a melhor forma de se adequar à nova lei.
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A decisão foi comemorada por quem tem tentado derrubar o juiz de garantias, mas não foi encarada como uma derrota para os defensores do projeto. O deputado Marcelo Freixo, por exemplo, disse que esse prazo era até razoável, visto que as comarcas, sobretudo as que hoje trabalham com apenas um juiz, devem se adaptar a essa nova lógica processual. A Associação Juízes para a Democracia e a OAB concordaram.
“O sistema tem que ser preparado para ser efetivo. E esse processo demanda algum tempo. Então, a implementação de imediato poderia ser pior do que o tempo de espera necessário para esse estudo de implementação, pois poderia criar algo que não seria compreendido”, avaliou o magistrado João Ricardo Costa, que já foi presidente da AMB e hoje é um dos associados da AJD. Ele ainda lembrou que outras legislações importantes também passaram por um tempo de implementação, como a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
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“O prazo de 30 dias [estabelecido na sanção do pacote anticrime], ainda mais em uma época de férias como essa, parecia ser realmente um prazo curto. Afinal, as leis que provocam maiores alterações no ordenamento jurídico acabam tendo um vacatis legis [vacância da lei]”, acrescentou o presidente da Comissão Especial de Direito Processual Penal, Gustavo Badaró. Ele ponderou, por sua vez, que esse tempo de adaptação normalmente é de 90 dias e também poderia ser um pouco menor neste caso. Mesmo assim, disse que o adiamento por 180 dias foi melhor do que uma implantação em 30 dias.
“Seria um perigo se implantasse em 30 dias e fosse uma bagunça. Todo mundo ia taxar como algo que não deu certo. Então, é preferível ter um pouco mais de tempo para fazer um bom trabalho, levando em conta as peculiaridades de cada comarca. É mais importante começar com algo bem estruturado que funcione de fato do que começar abruptamente, com falhas”, concluiu Badaró.
Os especialistas explicam que, se bem estruturado, o juiz de garantias vai evitar abusos e garantir a imparcialidade do processo judicial. A ideia é que o juiz que vai dar a sentença não seja contaminado pelo processo de coleta de provas e, dessa forma, faça um julgamento isento, com base nos autos. E, por isso, divide os juízes em dois grupos diferentes – os que fazem a instrução processual e a consequente coleta de provas e os que fazem o julgamento dos autos para dar a sentença – diferente do que acontece hoje, quando o mesmo juiz faz essas duas funções.
“O juiz tem que estar isento na hora de fazer o julgamento. Por isso, precisamos de uma estrutura legal que garanta essa imparcialidade. O estado tem que estar preparado para isso”, defendeu João Ricardo Costa, que classifica o juiz de garantias como “um elemento fundamental na democratização do processo penal”. “Cria um sistema penal mais garantidor dos direitos humanos. Garante um processo justo, com uma magistratura realmente isenta, equidistante das partes”, afirmou.
“Sofre resistência de parte dos magistrados porque, de certa forma, diminui o poder do sujeito que podia prender, interpretar e condenar pessoas no inquérito, mas agora só poderá fazer uma coisa ou outra. Mas é a novidade mais importante do processo penal desde a Constituição de 1988. Afinal, assim como acontece no sistema de divisão de poderes, divide o poder para aumentar o sistema de controle e conter abusos”, acrescentou Gustavo Badaró.
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