Segundo o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relação ao ano de 2018, o Brasil figura entre as nações com maior grau de desigualdade socioeconômica do planeta. Estamos em 79o lugar entre os 189 países avaliados. Na América do Sul, ficamos atrás do Chile, Argentina e Uruguai. Entretanto, aparecemos como a maior economia da América Latina e a nona do mundo, conforme a atualização de abril de 2018 do World Economic Outlook Database do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Deve ser destacado que as profundas diferenças observadas na sociedade brasileira não são obras do acaso, defeitos de funcionamento das engrenagens socioeconômicas ou meras consequências da corrupção endêmica que assola as instituições públicas e privadas. Convivemos com poderosos mecanismos, cuidadosamente construídos e ancorados na institucionalidade jurídica, viabilizadores da transferência de bilhões e bilhões de reais da grande maioria da população para um punhado de setores minoritários extremamente privilegiados.
Assim, assumem especial importância os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil inscritos no artigo terceiro da Constituição. São eles: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e c) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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Talvez esse último dispositivo desaparecesse nos novos trabalhos constituintes, conforme proposta recentemente apresentada pelo líder do Governo, Deputado Ricardo Barros. A pretensão é de substituir a Constituição atual por outra para “escrever muitas vezes nela a palavra deveres”. Essa é a sandice da vez. Não entendem, os raciocínios rasos e toscos, que cada direito constitucional corresponde a pelo menos um dever e que a ordem jurídica, muito mais extensa que a Constituição, fixou e continuará fixando uma multidão de deveres, até mesmo para viabilizar os direitos.
O indefectível mercado, cada vez mais idolatrado na sociedade brasileira (estranhamente, diga-se de passagem), não possui a mínima “vocação” para o combate à desigualdade socioeconômica. Uma das mais vigorosas políticas públicas para redução significativa do abismo social brasileiro, fundada na construção de um inteligente e provocante programa de renda mínima, causa arrepios nos “agentes econômicos” preocupadíssimos com uma certa “saúde fiscal” do Estado. Trata-se da inusitada e festejada “sustentabilidade” da dívida pública num cenário em que o Estado-devedor controla a taxa de juros, possui os instrumentos para acomodar a taxa de juros de longo prazo e tem um endividamento em moeda que emite.
PublicidadeAté o início do ano de 2020, o clã Bolsonaro não poupava críticas ao Bolsa Família. “Não sei o que passa na cabeça dessas pessoas achar que o socialismo e o comunismo têm como dar certo”, disse recentemente o senhor Jair Bolsonaro após referir-se ao Bolsa Família. O Programa Bolsa Família (PBF) é um importante instrumento de transferência de renda do Governo Federal, sob certas condições, que unificou e ampliou vários programas anteriores da mesma natureza. Foi instituído no Governo Lula (registre-se que não tenho a menor simpatia política por este senhor) em 2003 e está regulado pela Lei n. 10.836, de 2004.
Ocorre que a pandemia decorrente da covid-19 e a necessidade de auxiliar a população mais sofrida por intermédio de um auxílio financeiro emergencial fez brilhar os olhos dos inquilinos do poder em relação aos programas de renda mínima. A rápida conversão possui razões estritamente eleitorais. Na mira do clã Bolsonaro está uma possível, mas incerta, reeleição presidencial. Reputo secundário esse ponto. Socorrer os necessitados é um imperativo jurídico, ético, político e econômico, mesmo que a iniciativa governamental mire objetivo dos mais censuráveis.
Observe-se que as fontes financeiras cogitadas pelo governo para instituir um novo programa de renda mínima simplesmente “esquecem” o “andar de cima” da sociedade. O esforço fiscal sempre é dirigido para “os andares de baixo” da pirâmide social (o “mundo do trabalho” em sentido amplo). Veja a lista de hipóteses já levantadas:
a) congelar aposentadorias e pensões pagas pela Previdência administrada pelo Poder Público;
b) realizar cortes em benefícios sociais;
c) reduzir o pagamento de precatórios;
d) suprimir recursos da educação, especificamente os administrados pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb);
e) eliminar ou diminuir deduções (educação e saúde, por exemplo) do imposto de renda da pessoa física;
f) reduzir remunerações de servidores públicos (com redução proporcional da jornada de trabalho).
Mudando o foco dos debates, aponto uma fonte de financiamento que atinge diretamente o “andar de cima”. Trata-se de aumentar a tributação dos juros recebidos pelos bancos nas suas operações de crédito (as mais diversas formas de empréstimos concedidos a pessoas físicas e jurídicas).
Segundo dados do Banco Central do Brasil (BCB), o saldo das operações de crédito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) alcançou R$3,7 trilhões em agosto de 2020, sendo R$1,6 trilhão de pessoas jurídicas e R$2,1 trilhões de pessoas físicas. O Indicador de Custo do Crédito (ICC), medidor do custo médio de todo o crédito do SFN, apontou para 17,9% ao ano no mesmo mês de agosto.
Percebe-se, com extrema facilidade, que centenas de bilhões de reais são pagos anualmente por pessoas físicas e empresas na forma de juros bancários no Brasil. Ninguém se iluda. O devedor de bancos no Brasil não paga aquela taxa SELIC baixinha fixada pelo BCB. Esse, apesar de ser um dos principais problemas socioeconômicos brasileiros, inclusive por deprimir o consumo de forma significativa, raramente é objeto de alguma atenção da imprensa ou dos últimos governos, incluído o atual.
A proposta específica, a título de provocação para o debate, reclamando os estudos e ajustes pertinentes, envolve a utilização dos recursos do Programa Bolsa Família (a ser extinto) e os recursos advindos do aumento da tributação dos bancos, como antes posto. Com uma massa de recursos da ordem de R$ 100 bilhões de reais por ano, seria possível viabilizar uma renda básica (com mecanismos inteligentes de ingresso e saída do programa) na casa dos R$ 300 reais mensais para cerca de 30 milhões de beneficiários. Seria, ademais, um importante passo para a implementação da esquecida “renda básica de cidadania”, definida pela Lei n. 10.835, de 2004.
Portanto, é preciso muito cuidado com o discurso oriundo do governo Bolsonaro, notadamente na voz do senhor Paulo Guedes, da grande imprensa e do mercado, sobretudo financeiro. O Brasil não se resume ao superávit primário, à corrupção, aos “privilégios” do funcionalismo público (embora existam alguns a serem suprimidos) e aos “demoníacos” gastos previdenciários. A imensa maioria da sociedade brasileira nem imagina o que (e quanto) é “escondido” dela em termos de expedientes institucionalizados de transferência de riqueza (não se trata de corrupção) da imensa maioria da população para um punhado de “escolhidos”.
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