Por vezes considerado a razão dos problemas institucionais brasileiros, outrora entendido como a tábua de salvação para que o país não incorresse em paralisia decisória, o “presidencialismo de coalizão” não só está presente no léxico político do país diariamente como segue na berlinda. Detalhe: ainda hoje em dia são direcionados olhares contrastantes quanto ao seu efetivo funcionamento, garantia de estabilidade das decisões políticas e necessidade de se repensar o modelo adotado pós-1988.
Tudo isso tem um motivo extremamente razoável para ocorrer. Em pleno ano de 2024, no segundo ano de um governo que possui dois mandatos de ampla experiência política prévia, a pergunta que não quer calar é a seguinte: por que o presidente Lula, figura habilidosa, tem enfrentado tantas dificuldades de coordenação política junto ao Legislativo? Há ao menos duas grandes ordens de argumentos mobilizadas nas explicações.
Por um lado, há a identificação de alterações institucionais na dinâmica de relacionamento do Executivo em relação ao Legislativo, sobretudo em virtude da perda de controle sobre fatia de recursos orçamentários importantes por parte da presidência. É fato que isso se deve menos a Lula e, mais, ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o qual escancarou o acesso ao orçamento para os parlamentares na forma de emendas do relator, popularmente conhecido como “orçamento secreto”.
Embora o Congresso já viesse avançando sobre o orçamento ainda antes, no governo Dilma Rousseff, com as chamadas emendas impositivas, é com Bolsonaro que a proporção da descoordenação se torna dramática e, agora, o governo Lula passa por grandes dificuldades quanto a saciar os apetites parlamentares. Cerca de um quinto do total de recursos livres do orçamento da União tem destinação dada pelos congressistas na forma de emendas parlamentares. Ou seja, a capacidade de controlar recursos importantes do orçamento passíveis de utilização como moedas de trocas políticas entre Executivo e Legislativo tem se perdido das mãos da presidência. Para alguns, a despeito disso, as “instituições continuam funcionando normalmente”, como se não houvesse qualquer desafio expressivo aqui no que diz respeito aos custos de governabilidade.
Por outro lado, toma-se como ponto de análise as dificuldades associadas a três fatores contextuais: 1) a configuração representativa do Congresso Nacional, mais distante das preferências políticas do Executivo, o que torna a tarefa do governo de construção da agenda política mais dificultosa perante uma oposição estridente e intensa em mobilização virtual e, uma coalizão, que caminha relativamente bem em assuntos econômicos, mas que impõem desafios de coordenação significativos em outras áreas; 2) o fator Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados), visto como elemento dificultador do processo de articulação política do Executivo em relação ao Legislativo devido ao modo como atende a interesses parlamentares, conseguindo dificultar a vida do governo em diversos momentos; 3) relativo distanciamento das preocupações de Lula com uma série de temas da agenda doméstica frente a uma preocupação expressiva com a agenda internacional, resultando, inclusive, em maior distanciamento quanto ao trato político junto ao Legislativo. Para ilustrar esse fato, Lula teve 74% menos encontros com parlamentares do que o ex-presidente Bolsonaro considerando o mesmo tempo de mandato, segundo reportagem do Estado de S. Paulo (link para assinantes).
Seja pelo olhar mais amplo das mudanças institucionais, seja pelas condições políticas do contexto atual, ou por meio da combinação de ambos, o fato é que Lula tem sentido dificuldades para coordenar sua coalizão de governo. A distribuição de ministérios nas mãos e partidos aliados ainda se mostra insuficiente, o pagamento de emendas parlamentares em volume recorde também não surte o efeito esperado por muitos dos interlocutores e, de quebra, a negociação em torno de dezenas de vetos presidenciais pode vir a frustrar os objetivos da presidência em termos de preferência nos projetos.
PublicidadeO criador do conceito de “presidencialismo de coalizão” na literatura brasileira, Sérgio Abranches, em seu livro “Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro” chama a atenção para um ponto crucial: o presidente, na condição análoga de um jogador de futebol, tem que ser simultaneamente, meio campista e atacante. Enquanto organiza as jogadas para conquistar os meios para se ganhar o jogo precisa, no limite, ganhar o próprio jogo. Sob pena de ter os resultados políticos almejados frustrados. A questão é que a coalizão se organiza pelo centro a fim de se governar e, o desafio do Congresso atual, parece ser justamente esse: qual centro? Pelo popular “centrão” já deu para perceber que o custo é elevadíssimo, a fidelidade baixa e, os desafios, inúmeros. No entanto, esses são os jogadores com os quais se pode contar e, diante dos expressivos desafios, lidar com velhas estratégias para condições novas tem sido o grande desafio. Talvez seja a hora de começar a mudar a estratégia do jogo.
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