Protagonista do movimento de afastamento do ex-presidente Fernando Collor e apoiador do processo contra a ex-presidente Dilma Rousseff, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ainda se divide sobre um eventual pedido de impeachment de Jair Bolsonaro. Relatório concluído semana passada pela comissão especial de juristas da OAB, grupo liderado pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, recomendou à entidade que peça à Câmara o impedimento do presidente com base em uma série de crimes gravíssimos atribuídos a ele.
O assunto, porém, causa controvérsia no Conselho Federal e está longe de ser definido. Há conselheiros e ex-presidentes contrários à apresentação de qualquer pedido de afastamento de Bolsonaro, seja por compartilharem de suas visões, seja por entenderem que ele não cometeu crime, seja por considerarem o momento turbulento demais por causa da pandemia. Outros defendem que o relatório seja examinado imediatamente, por já reunir elementos técnicos, e encaminhado para que a Câmara decida o que fazer. E há um grupo que entende que o pedido de abertura do processo, a despeito de reunir as condições técnicas, precisa ser apresentado quando estiverem dadas as condições políticas no Congresso.
O relatório, elaborado por uma espécie de comitê de notáveis, é contundente: atribui a Bolsonaro os crimes de homicídio e lesão corporal por omissão e crimes de responsabilidade na esfera nacional, por causa do enfrentamento da pandemia; e de crime contra a humanidade, no plano internacional. Acusações nunca reunidas em um pedido de impeachment contra um presidente da República no Brasil.
“O presidente não somente descumpriu o seu dever de zelar pela saúde pública, como também tentou sistematicamente impedir que medidas adequadas ao combate da covid-19 fossem tomadas. Há vários exemplos de tentativa de interrupção de cursos causais salvadores empreendidos por outras autoridades”, diz trecho do documento (veja a íntegra).
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Timing político
Embora apoie o parecer dos juristas, o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, pretende aguardar os desdobramentos dos próximos fatos, como as investigações da CPI e do Tribunal de Contas da União, para submetê-lo ao pleno da Ordem, formado pelos conselheiros e pelos ex-presidentes da entidade, e aos presidentes das seccionais. Os advogados que presidiram a OAB até 1994 têm direito a voto na decisão. Já os que a comandaram de lá para cá, apenas voz nas discussões. Todos, porém, são conselheiros honorários e, como tais, exercem grande influência sobre os demais integrantes do colegiado.
Santa Cruz adiantou ao Congresso em Foco que dificilmente o texto será apreciado pelo pleno do Conselho no decorrer dos próximos 90 dias. Para ele, o debate precisa ser amadurecido e acompanhado do timing político.
“Essa discussão não é imediata e se dará a médio prazo. Vai continuar o trâmite, vamos ouvir personagens, respeitando o tempo político e a consolidação do aspecto técnico”, disse. Nos próximos meses, segundo ele, o humor do Congresso em relação pode mudar conforme o andamento das investigações em curso contra o presidente. O apoio do Centrão e a falta de mobilização nas ruas, por conta da pandemia, dificultam o cenário atualmente, na avaliação dele.
“A CPI pode ajudar com essa consolidação. Hoje veio a público que não há orçamento para o combate à pandemia. É um fator que mostra a total incapacidade do governo federal. O TCU tem mostrado isso. É o governo mais incompetente da história da República”, considera o presidente do Conselho Federal da OAB.
Divergências
O Congresso em Foco conversou com quatro ex-presidentes da entidade. Um deles, que comandou o conselho federal entre 2010 e 2013, Ophir Cavalcante, discorda da estratégia de se esperar o timing político no Congresso. Embora prefira não explicitar sua posição sobre o assunto, Ophir defende que a entidade se atenha aos aspectos técnicos e deixe as condições políticas para o Parlamento decidir.
“Entendo que a Ordem não pode ficar jungida àquilo que pode acontecer ou não com os seus pedidos. Alguns pedidos da Ordem encontraram eco, como o do Collor e o da Dilma. O de Michel Temer, não. A análise a ser feita não deve depender do resultado útil e sim do preenchimento dos requisitos. Temos de analisar de forma técnica, se tem ou não espaço para isso. Se for para esperar como vai se desenvolver na opinião pública ou não, é preferível nem pautar”, defende Ophir. “Mas cabe à atual direção da Ordem fazer essa análise”, acrescenta.
Um ex-presidente nacional da OAB que pediu para não ter a identidade revelada disse ao Congresso em Foco que, por tradição, a Ordem não apresenta pedido apenas para marcar posição.
“Impeachment não é só questão jurídica, nem só política. Os dois elementos têm de estar presentes para que ele seja viabilizado. A OAB não entra com pedido só para dizer que está entregue. Ela entra quando acha que o impeachment vai acontecer”, afirma o advogado. “Não é uma posição estática, mas dinâmica, que depende dos acontecimentos na sociedade, dos fatos políticos e jurídicos”, acrescenta.
Presidente do Conselho Federal entre 2007 e 2010, Roberto Busato lembra que pautou durante sua gestão um requerimento de impeachment do então presidente Lula por fatos relacionados à sua conduta ética e que o pedido foi rejeitado internamente. Para ele, agora, não resta dúvida de que Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade, principalmente na condução da pandemia.
“É bem possível o impeachment do presidente. O problema é que tudo depende da admissibilidade do pedido pelo presidente da Câmara, que não está sinalizando nada neste momento”, observa. “O orçamento, essa coisa pavorosa que saiu, é uma verdadeira negociata, tudo comandado pelo Arthur Lira, que é o homem da admissibilidade”, afirma Busato ao apontar a influência dos acertos políticos entre Planalto e Congresso.
Mudança de humor
Para Cezar Britto, que presidiu a OAB entre 2007 e 2010, ainda é difícil avaliar qual o posicionamento predominante entre os conselheiros federais hoje. “O tema do impeachment nos força a decidir. Alguma posição é preciso ter. Acho que a OAB tem se posicionado externamente muito bem no acompanhamento do governo. O Felipe Santa Cruz tem se posicionado corretamente no combate aos abusos do governo. A Ordem está honrando sua tradição de defender a Constituição e o Estado de direito”, afirma Cezar, que já apresentou na condição de advogado e integrante da sociedade civil dois pedidos de impeachment à Câmara contra Bolsonaro.
Na avaliação de Cezar Britto, a lista de crimes cometidos por Bolsonaro é farta e as condições políticas começam a surgir para o impeachment. “O governo insiste no negacionismo da pandemia. Há uma perda de apoio do empresariado; uma fragilização na relação do presidente com os militares e dos militares com a sociedade; há uma perda de popularidade na sociedade; há um descompasso do governo em sua política externa e ambiental, o que prejudica o agronegócio, base apoiadora de Bolsonaro; e o fato de o vice-presidente [Hamilton Mourão] ser da confiança dessas bases com as quais ele rompeu”, afirma.
Efeitos da pandemia
Felipe Santa Cruz diz que o Conselho Federal da OAB entende que um processo de impeachment deve ser usado como exceção e não como regra, por criar fissuras e traumas na sociedade, e que a pandemia impede a movimentação popular nas ruas, o que torna o cenário mais favorável ao presidente. “Hoje o governo tem uma base parlamentar no Congresso. A sociedade está tomada por outras questões, como a sobrevivência, o trabalho, o medo, o luto, as pessoas estão perdendo amigos e familiares”, observa.
Para ele, a CPI pode ser fato novo conforme as revelações que produzir. “A CPI vai verificar a ocorrência ou não dessa condução equivocada e infeliz do governo brasileiro. Virou unanimidade no mundo todo, que trata o Brasil como o pior modelo de enfrentamento à pandemia. Esse quadro político se altera com muita rapidez. Há muita insatisfação. Cabe a nós continuarmos esse debate jurídico, que vamos fazer com o maior cuidado possível, respeitando todo o direito à defesa, ao contraditório”, diz o presidente da OAB.
O parecer dos juristas será analisado, ainda em data não determinada, pelos integrantes do Conselho Federal. A diretoria é formada pelo presidente e outros quatro membros. Têm cadeira e voto no órgão 81 conselheiros, três representantes por unidade da federação, além dos presidentes da entidade até 1994. Poucos deles, no entanto, participam ainda das discussões internas. Os demais ex-presidentes têm direito a emitir opinião e exercem influência sobre alguns dos conselheiros.
Presidida pelo ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, a comissão de notáveis é integrada ainda pelos juristas Miguel Reale Jr., Carlos Roberto Siqueira Castro, Cléa Carpi, Nabor Bulhões, Antonio Carlos de Almeida Castro, Geraldo Prado, Marta Saad, José Carlos Porciúncula e Alexandre Freire. Todos eles assinam o documento recomendando à OAB que entre com o pedido de impeachment do presidente.
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