*Hélio Doyle
Passadas as eleições municipais e definidos os nomes dos próximos presidentes da Câmara e do Senado, é muito provável que volte à cena política a proposta de substituir o sistema presidencialista pelo que chamam de semipresidencialismo – um sistema híbrido que poderia ser mais bem chamado de semiparlamentarismo. É, na verdade, um parlamentarismo no qual o presidente da República é eleito pelo povo e mantém alguns dos poderes que tem no presidencialismo.
O semipresidencialismo tem sido defendido por figuras importantes da política brasileira, como o ex-presidente Michel Temer e o deputado Arthur Lira (PP-AL), por ministros do Supremo Tribunal Federal, como Luiz Roberto Barroso e Gilmar Mendes, e por muitos outros políticos e juristas. Não está claro que poderes o presidente da República teria na proposta que defendem.
O novo sistema parece interessar sobretudo aos parlamentares do “centrão”, que saiu mais forte do primeiro turno das eleições municipais. Para esses parlamentares, que podem ser enquadrados como de centro-direita e direita, alguns com viés de extrema-direita, é muito interessante que o Congresso Nacional governe o país, indicando um deles como primeiro-ministro.
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Como a composição da Câmara e do Senado sempre foi majoritariamente conservadora e de direita, o semipresidencialismo evitaria, no pensamento deles, um governo om tendências á esquerda. E ainda por cima seria mais fácil para os parlamentares terem o comando do orçamento, das emendas e da máquina de governo, favorecendo as práticas corruptas e nada republicanas que caracterizam o Congresso desde a Nova República.
Alguns defendem que o sistema só entre em vigor em 2030, para refutar a alegação de que o objetivo é impedir o presidente Lula de continuar governando caso seja reeleito em 2026. Mas a hipótese de implantá-lo já para 2027 não é descartada, e não será a primeira vez que a maioria de direita imporá sua vontade no modo trator, sem ligar para questões éticas e legais.
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Parlamentarismo disfarçado
Há poucos exemplos de semipresidencialismo, ou semiparlamentarismo. Em Portugal, o presidente da República é eleito pelo povo e tem menos poderes do que o primeiro-ministro, embora mais atribuições do que em repúblicas parlamentaristas tradicionais. Já na França, na Rússia e na Argélia, quem tem mais poder é o presidente também eleito, e não o primeiro-ministro.
Na verdade, tanto faz o que vem depois do “semi”: seja chamado de semipresidencialismo ou semiparlamentarismo, o que importa é que é um sistema híbrido no qual o chefe de Estado tem mais poderes do que nas repúblicas parlamentaristas nos quais é uma figura cerimonial ou simbólica. O sistema em Portugal, em essência, é parlamentarista. Na França, Rússia e Argélia é, na realidade, presidencialista.
Está claro que essa proposta, que vem rolando há alguns anos, não tem como real objetivo, para a maioria dos que a defendem, o aperfeiçoamento dos sistemas político e eleitoral do Brasil, o que seria positivo, pois que estão entre os piores e mais disfuncionais dentre os que vigoram em países que adotam a democracia liberal, no modelo ocidentalista.
O objetivo da maioria dos que propõem a mudança é meramente casuístico: transferir poderes do presidente da República – e do Executivo – para o Legislativo. Por que não, então, o parlamentarismo, sem disfarces? Por cálculo político, pela dificuldade maior em se impor esse sistema à realidade brasileira.
Nas repúblicas parlamentaristas, o presidente não é eleito diretamente pelo povo, como nos “semis” Portugal, França, Rússia e Argélia, mas pelos parlamentos, como na Itália, Alemanha, Suíça e Grécia. Seria difícil, depois de 20 anos sem eleições para presidente, de uma grandiosa campanha popular e de nove eleições diretas, fazer o povo brasileiro aceitar que o chefe de Estado seja eleito pelo Congresso Nacional ou por um colégio eleitoral restrito, e ainda por cima com poderes limitados.
Outro motivo para não se falar em parlamentarismo, sem disfarces, é que, por duas vezes, os eleitores rejeitaram o parlamentarismo no Brasil. Em 1963, a volta do presidencialismo teve o apoio de 76,98% dos eleitores. Já a manutenção do parlamentarismo, imposto pelo Congresso Nacional em 1961, apenas 16,88%. Em 1993, a diferença foi menor: 55,67% pelo presidencialismo e 24,91% pelo parlamentarismo.
Em 1961 e 1993, a proposta de parlamentarismo surgiu, como agora surge a de semipresidencialismo, para reduzir os poderes de presidentes indesejáveis para os setores de direita. Em 1961, foi implantado por manobra parlamentar: os políticos e militares de direita, diante da resistência popular e de setores militares liderada por Leonel Brizola, não teve como impedir a posse do vice-presidente João Goulart e aprovou o parlamentarismo para reduzir seus poderes.
Em 1993, o plebiscito foi proposto diante da possibilidade de Leonel Brizola ou Lula serem eleitos em 1994, o que não aconteceu. Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente e não se falou mais em parlamentarismo, pelo contrário – o presidencialismo foi fortalecido com a aprovação da reeleição já para as eleições de 1998, mais um golpe parlamentar irrigado com a compra de votos.
Há um terceiro motivo para que seja proposto um parlamentarismo disfarçado de semipresidencialismo: o baixo nível político de muitos parlamentares e o enorme desgaste político de deputados e senadores, grande parte envolvida em acusações de corrupção — e não só devido ao absurdo “orçamento secreto” e emendas que manipulam para obter ganhos eleitorais e financeiros.
Entregar totalmente o governo do país ao Congresso, com a composição que tem hoje, para muitos significa não apenas entregá-lo ao conservadorismo exacerbado e retrógrado, mas também à alta probabilidade de ver políticas públicas substituídas por interesses fisiológicos, pelo patrimonialismo e pela corrupção.
Parlamentarismo sem disfarce
Talvez o parlamentarismo seja mesmo um sistema de governo melhor para o Brasil, evitando as disfuncionalidades do presidencialismo, como ter um chefe de governo sem apoio no Congresso, e por isso obrigado a negociações pouco ou nada republicanas com parlamentares eleitos, sobretudo, pelo poder econômico. O debate é válido.
No presidencialismo brasileiro prevalecem partidos políticos amorfos, sem linha política e ideológica e sem democracia interna, e alguns mais se assemelham a organizações dominadas por mafiosos. Não há, no nosso sistema, proporcionalidade real na Câmara dos Deputados, nem em relação à população das unidades federadas nem quanto a gênero, raça e renda. É um sistema que vem se mostrando ineficiente e disfuncional, levando a acordos políticos nefastos e alto grau de ingovernabilidade.
Mas uma proposta honesta de parlamentarismo, com o objetivo de ter um sistema de governo melhor tem, primeiro, de ser completa. Tem de envolver mudanças no sistema eleitoral e na organização partidária. Como está, a disfuncionalidade continuará, com qualquer sistema. Não basta criar o cargo de primeiro-ministro e lhe dar atribuições que hoje são do presidente da República, é preciso rever como são eleitos os parlamentares e como se organizam os partidos.
O sistema eleitoral tem de ser mudado, mesmo no presidencialismo, para que seja mais democrático e garanta igualdade de oportunidades, aproxime mais os eleitores dos eleitos, melhore a representatividade e a proporcionalidade e reduza os gastos com as campanhas eleitorais – tanto com recursos públicos quanto com recursos privados, legais ou ilegais.
Os partidos têm de ser democratizados internamente e a legislação tem de impedir as artimanhas que asseguram presença parlamentar (e recursos públicos) a grupos sem identidade política e real representatividade, formados mais por interesses financeiros (fundo partidário, fundo eleitoral e desvio de recursos públicos com emendas e exercício de mandatos e cargos executivos e legislativos) do que por princípios e objetivos políticos.
Mesmo no parlamentarismo, o presidente da República pode ser eleito diretamente, como na Irlanda e na Áustria. Não é preciso o “semi” para garantir isso. Não há incompatibilidade entre parlamentarismo e eleição direta, a questão real é que poderes tem o eleito. As atribuições e os poderes do chefe de Estado e do chefe de governo têm de ser claramente definidos, assim como os papeis do Executivo e do Legislativo na elaboração e aprovação do orçamento e das leis. A não definição com clareza leva a inevitáveis crises institucionais.
Enfim, só faz sentido pensar em mudar o sistema de governo, para o parlamentarismo ou para seu modelo disfarçado ou envergonhado — o “semi”–, com um grande e amplo debate público, envolvendo ao máximo a população, seguido de uma consulta popular como em 1963 e 1993. Sistema de governo não pode ser mudado por golpe parlamentar.
Não será fácil debater mudanças nos sistemas de governo, de eleições e partidário. A ascensão da extrema-direita fascista e histriônica não tem permitido que haja clima para debate sério no Brasil, substituído por gritos, agressões e postagens nas redes sociais. E essa grave distorção na democracia brasileira nada tem a ver com o sistema de governo que adotamos ou poderemos adotar.
Hélio Doyle, jornalista, professor aposentado da UnB e consultor político e de
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