Glauber Rocha falou uma frase que viralizou ali pelos anos 1960, quando nem se ouvia falar no verbo “viralizar”. “Sou um artista. Não me exijam coerência”.
A frase volta com força quando nos deparamos com a campanha massiva e altamente perigosa de satanização da mídia de mercado, que vem sendo tratada a pontapés da extrema esquerda à extrema direita precisamente porque realiza com independência o seu trabalho. Quando escrevo “mídia de mercado” me refiro a toda e qualquer instituição midiática que não exista para ser porta-voz de algum órgão do estado e seja mantida por anúncios pagos. Ou seja: jornais – impressos ou online -, emissoras de rádio e TV, sites de notícia e opinião.
Ela continua a ser a única mídia, apesar de todos os defeitos – e tem muitos, – que atua, de forma geral com exceções que apenas confirmam a regra, com um mínimo de independência editorial e crítica, capaz de fazer frente à informação oficial e dirigida, produzida pelos veículos institucionais. E com uma atuação pautada num protocolo que se conhece como responsabilidade editorial, bem ao contrário do vale-tudo das informações que circulam pelas redes sociais. Mesmo quando os veículos financiados pelo estado deveriam se prestar ao interesse público, na maioria as vezes se curvam ao governo da hora.
Durante a ditadura, Vladimir Herzog, diretor do departamento de jornalismo da TV Cultura, foi torturado e morto nas dependências do tenebroso DOI-CODI justamente por não se prestar ao papel de porta-voz dos militares.
Outro dia a Associação Brasileira de Imprensa divulgou uma nota dura contra o vergonhoso direcionamento editorial imposto à TV Brasil, que deveria atuar como órgão de comunicação livre de ingerências políticas mas, em diversos momentos, vem se portando como instrumento oficioso de divulgação dos atos do governo Bolsonaro. Situação que tende a se agravar com a chegada do genro de Silvio Santos ao recriado Ministério das Comunicações, sob cujo guarda-chuva se abrigam a EBC e suas emissoras.
PublicidadeA conferir. Só pra lembrar: no final dos anos 1980, em São Paulo, a TV Cultura exibiu num de seus telejornais professores pisoteando um cartaz do então governador Orestes Quércia. O Departamento de Jornalismo da emissora recebeu uma reprimenda pelo fato de o “Jornal da Cultura” divulgar manifestações “contrárias ao governo”. É aquela história, “tô pagando, então sou eu que mando porque quem come do meu pirão apanha do meu cinturão.”
Na era Lula a mídia de mercado era chamada de “mídia golpista”. Seus seguidores continuam até hoje a usar a expressão, mesmo quando essa mídia combate o governo Bolsonaro. Enquanto isso, os próprios bolsonaristas acharam outro apelido para a mídia de mercado. A “extrema imprensa”. Os petistas odeiam que as posturas de Lula sejam comparadas às de Bolsonaro em relação à mídia, mas a verdade é que guardam semelhanças em muitos casos. Lula tentou emplacar um “Conselho Federal de Jornalismo”, que pretendia, ao fim e ao cabo, impor uma espécie de controle, ou seja, de censura. Ainda bem que não conseguiu.
Bolsonaro, aproveitando-se da popularização das mídias sociais, vem isolando abertamente a mídia de mercado a ponto de tentar cortar a publicação dos balanços das grandes empresas para esgotar uma importante fonte de recursos desses veículos. Lula dizia que não lia jornal de manhã “pra não ter azia”. Bolsonaro também não o faz pra “não passar mal ao começar o dia”. Em compensação, em plena ditadura, o General Garrastazu Médici dizia sentir-se feliz toda noite ao assistir ao Jornal Nacional que, segundo ele, mostrava “um Brasil que marchava em paz rumo ao desenvolvimento” enquanto o resto do mundo sofria com greves, agitações e atentados.
E nem podia ser de outra forma, porque a censura cuidava de impedir a divulgação de fatos desabonadores do seu governo, além da notória ligação entre ele e o então todo-poderoso Roberto Marinho, chefe das organizações Globo que durante anos funcionou como porta-voz oficioso da ditadura. Há alguns anos os Marinho publicaram um pedido de desculpas por essa postura. Um tanto tarde, mas se retrataram publicamente.
O que chama a atenção hoje é a truculência bolsonarista, solidamente apoiada nas convicções antidemocráticas do atual presidente, que não se compara às críticas de Lula e dos seus apoiadores, suaves como plumas em comparação com a situação atual. Nenhum general-ditador mandou jornalista calar a boca. Nem fez insinuações machistas contra repórteres mulheres, como o capitão Bolsonaro faz dia sim e outro também. Mesmo que ultimamente ande contido e já não o faça em público, mas há informações de que continua a fazê-lo na intimidade do poder, com seus ministros e assessores.
Mas, para justificar a menção à frase de Glauber, é preciso haver coerência. A expressão PIG – Partido da Imprensa Golpista, cunhada por Paulo Henrique Amorim, cuja carreira foi realizada na maior parte da sua vida profissional dentro da própria “mídia golpista” que condenava, não se sustenta se for analisado o papel essencial dos veículos de mercado na restauração democrática, em contraposição às informações e análises feitas pelos órgãos controlados pelo governo.
Não fora essa mídia e sua resistência, principalmente contra a censura, e dificilmente teríamos saído da ditadura. Ou até sairíamos, porém com muito mais atraso. Nem teria havido o movimento das “Diretas já”. Nem o impeachment de Collor. Curiosamente, os que condenam o que chamam de “mídia golpista” ou “extrema imprensa” se servem dela desde que possa ser usada para validar suas ações.
O governo Bolsonaro exibe como troféu qualquer notícia positiva de algum setor de seu governo divulgada pela “mídia extrema”. Do lado oposto as atitudes são as mesmas. Outro dia recebi de uma petista radical um convite para assistir a um debate entre integrantes do atual governo e líderes da esquerda, a ser veiculado por um órgão da “mídia golpista”. Contestei, sem obter retorno. “Ora, se não é confiável e é ‘golpista’, por que dar audiência a esse canal?”
Não se há mesmo de exigir coerência ao artista Glauber Rocha, internacionalmente reconhecido como genial. Nem a qualquer outro artista. Mas aos ativistas políticos, sim. Estejam eles à esquerda ou à direita. Se a Folha de S. Paulo fala bem da esquerda, tudo bem. Mas se faz críticas, aí é golpista ou extrema. Se a TV Globo traz notícia positivas, tudo bem. Mas se traz notícias negativas, aí é golpista ou extrema. Será que dá pra entender?
Coerência, senhores! Embora o Brasil seja a mais perfeita representação da “Terra em Transe” de Glauber, infelizmente ele já não está entre nós.