O Brasil não se livrará tão cedo da ameaça golpista dos quartéis se o conteúdo curricular e doutrinário ensinado no dia-a-dia das casernas não passar por uma profunda reforma. Reforma capaz de redefinir conceitos fundamentais como o papel das Forças Armadas, bem como extinguir a ideia arraigada há décadas – talvez séculos – da existência de um “inimigo interno” sempre identificado com o que se convencionou chamar de “ameaça comunista”, a qual justificaria o uso da força e de meios heterodoxos radicais e criminosos como torturas, prisões, execuções ou “sumiços” de opositores.
O fim do ciclo ditatorial-militar iniciado em 1964 não se fez acompanhar da necessária reforma dos conteúdos curriculares e doutrinários acima mencionados. Como já não tinha ocorrido com o fim da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1945. Pelo contrário, e como sempre vem acontecendo ao longo da história, a saída tem sido a contemporização, tal como ficou claro na Lei da Anistia, que só adquiriu condições políticas de ser aprovada pelo Congresso com a condição de ser “recíproca”, ou seja, blindar os militares envolvidos em crimes políticos como tortura, sequestro, desaparições forçadas e assassinatos contra os chamados “subversivos”, como se convencionou chamar os que se insurgiam contra a ditadura. Ou seja: a Lei da Anistia funcionou como um fechar de olhos para todas as atrocidades cometidas até 1985, quando o texto foi votado. Tudo em conformidade com o lema defendido pelo penúltimo ditador de plantão, o General Ernesto Geisel, que concordava com a abertura, mas desde que ela fosse “lenta, gradual e segura”. De 1964 até 1985 pelo menos 434 opositores do regime de exceção foram mortos ou considerados “desaparecidos”. Sem falar nos 20 mil torturados ao longo do período.
Leia também
Neste exato momento, o país assiste ao mesmo filme: na intimidade das casernas cuida-se de evitar a todo custo a punição dos militares que participaram direta ou indiretamente dos atos golpistas de 8 de janeiro. E a razão é precisamente a mesma que vem justificando a leniência com que seguidos governos tratam a instituição militar, que continua a ser identificado como um “poder” e não se ensina nas escolas militares que seus integrantes não são investidos de poder algum. São, apenas e exclusivamente, funcionários públicos fardados. Como historicamente as forças armadas foram identificadas como um “poder moderador” ou como “anjos da guarda”, e essas supostas destinações são repetidas e reafirmadas nos centos de formação e nas ordens do dia lidas nos feriados nacionais, nada se altera. E, com ou sem trocadilhos, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. (Só a título de curiosidade, a frase teve origem em Portugal, ao tempo da primeira invasão francesa, quando o general francês Junnot instalou seu quartel em Abrantes. Como ninguém fazia nada para se opor a Junnot, nem o Regente D. João VI tomava qualquer medida que evitasse o avanço das tropas francesas em direção a Lisboa, toda vez que alguém perguntava como estava a situação a frase era repetida). Fecha parêntese.
Em recente entrevista ao Correio Braziliense, o historiador e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis, autor de obras fundamentais para a compreensão das ditaduras brasileiras – Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, Ditadura e Democracia no Brasil e A Ditadura que mudou o Brasil – , chamou a atenção para a necessidade de se parar de “passar o pano” e se enfrentar a questão da reformulação dos conteúdos e da doutrina ensinada nos quartéis, sob pena de continuarmos a repetir indefinidamente os mesmos erros. “Do que precisamos é de mudanças qualitativas na formação dos militares, nas academias militares, nos cursos de aperfeiçoamento de oficiais e na Escola Superior de Guerra (ESG). Trata-se de repensar o papel das Formas Armadas no contexto democrático, formulando uma nova doutrina, superando-se as tradições e os cacoetes da guerra fria e do “inimigo interno”.
Sim, foi ótima a decisão do presidente Lula de desestimular as escolas cívico-militares, até porque uma pesquisa encomendada pelo Cenpec e pela Ação Educativa comprovou que 72% dos entrevistados confiam mais em professores do que em militares para trabalhar em escolas. Mas o buraco é bem mais embaixo. Lula deveria, sim, incluir entre seus objetivos na presidência uma mudança profunda na formação dos militares brasileiros, com a mira apontada lá para o futuro. E desde logo incentivar os debates e incluir o tema entre suas prioridades. Não se trata de revanchismo, que fique claro. Mas de se cortar o golpismo pela raiz, reposicionando os militares dentro de suas funções de funcionários públicos fardados a quem cabe a nobre missão de defender a democracia, e não sufocá-la em nome de uma doutrina assentada nos princípios da extrema direita.