Quando Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirma que nunca pretendeu a reeleição, mas só revela isso depois da decisão do STF preterindo essa possibilidade, e que não assinou a abertura do processo de impeachment contra Bolsonaro porque não via motivação e porque a Câmara precisa manter o foco nas ações de combate à pandemia, e a gente combina isso com o clima cada vez mais beligerante entre ele e o presidente da república, é possível extrair daí que a alça de mira de sua arma está apontada mais pra cima do que parece.
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Maia é um animal político. Nunca fez nem vai fazer outra coisa na vida que não seja política. Tem 800 defeitos, mas é homem de riscos calculados, não dá prego sem estopa e é cumpridor de acordos. Num primeiro momento, é possível vislumbrar que não vai se levantar daquela cadeira – tenha feito ou não seu sucessor – sem deixar uma marca bem forte: uma marca… para a história, que possa lhe abrir portas para o futuro. Politicamente, Bolsonaro é uma anta manca das quatro patas. Ao abrir o confronto com Maia, não leva em conta que o presidente da Câmara ainda tem caneta cheia e está na plenitude de um mandato que vai até 31 de janeiro do ano que vem. Sobre a mesa de Maia repousam 56 pedidos de impeachment, a maioria bem factíveis, e que justificam plenamente a ejeção de Bolsonaro daquela cadeira no Palácio do Planalto.
Aliás, até aqui, Bolsonaro é o presidente com o maior número de pedidos de impeachment em toda a história. Só por comparação, Collor foi alvo de 29. Dilma acumulou um total de 68, mas nos dois mandatos. Tanto Collor quanto Dilma foram acusados de crimes bem menos graves do que Bolsonaro. O que não impediu que fossem espirrados do Palácio do Planalto, o primeiro por renúncia forçada; a segunda, por decisão legislativa.
Tem acusação pra todo gosto
A maioria dos pedidos de impeachment contra Bolsonaro é por crime de responsabilidade, como atos atentatórios à Constituição, à existência da União, ao livre exercício dos poderes, à segurança interna do país, ao direito político dos indivíduos, à probidade administrativa, à lei orçamentária e eventual descumprimento de decisões judiciais. No primeiro ano de mandato, Bolsonaro foi alvo de pedidos de impeachment por apologia à ditadura militar, negligência com a prática de crimes ambientais – que ganharam um peso adicional com a repercussão planetária do desmatamento e das queimadas na Amazônia -, incitação ao ódio e xenofobia. Além das tentativas de interferência nas investigações sobre o assassinato de Marielle Franco. E de tentar interferir na Polícia Federal, conforme acusação do ex-ministro Sérgio Moro, visando proteger o filho, senador Flávio, alvo de denúncias de recebimento de parte ou totalidade dos vencimentos de funcionários fantasmas ao tempo em que foi deputado estadual no Rio de Janeiro.
PublicidadeOutros pedidos acusam o presidente de responsável pelo incitamento a atos contra a democracia como a participação dele nas manifestações a favor do fechamento do Congresso e do STF. E de incentivo ao descumprimento de preceitos internacionais como o afastamento social, o uso de máscaras e, ultimamente, ao desestímulo ao uso da vacina contra o coronavírus. Somadas a isso ainda aparecem omissões de dados sobre a nova doença – que obrigaram os órgãos de imprensa a criar um consórcio pra divulgar dados confiáveis – e condutas improvisadas ou francamente negacionistas durante uma das piores crises de saúde pública da história. Na área política ainda há pedidos de impeachment que elencam denúncias feitas fora do Brasil.
Só na Corte Internacional de Haia, na Holanda, existem duas, por crimes contra a humanidade, pela irresponsabilidade de suas falas que incentivam “o descumprimento das medidas necessárias ao combate ao coronavírus”. Uma outra, movida pelo PDT, tem natureza francamente política e simbólica. É por ter convidado e recebido no Palácio do Planalto o tenente-coronel reformado Sebastião Curió Rodrigues de Moura, conhecido como Major Curió, um dos responsáveis pela repressão à guerrilha do Araguaia durante a ditadura militar, acusado de homicídios e ocultação de cadáveres. Recebê-lo na sede do governo federal é avaliado como atentatório aos princípios democráticos. Além das homenagens ao torturador Brilhante Ustra, feitas antes de assumir o mandato de presidente, nunca negadas nem retiradas por Bolsonaro.
E os R$89 mil de dona Michele? E aquela história de “comer gente”?
E nem mencionamos aquele cheque de R$89 mil nas contas de Michele Bolsonaro nem no fato, revelado abertamente pela ex-funcionária do gabinete, de que Fabrício Queiroz era quem pagava as contas do então deputado Bolsonaro. Nem de acusações menores mas não menos impactantes como no pouco caso no uso do dinheiro público e falta de decoro. Que ficaram claros ao admitir que usou o apartamento funcional da Câmara, ao tempo em que era deputado, exclusivamente para, nas palavras dele, “comer gente”.
Ou seja, motivações para a votação de um impeachment não faltam. Isoladamente talvez alguns não tenham tanto peso, mas, se enfeixados num único processo, o conjunto da obra tem capacidade explosiva para atirar pelos ares não apenas um, mas uma dezena de presidentes da república. Agora, se um processo de impeachment tem alguma chance de êxito neste momento, aí é difícil prever, sobretudo depois da compra do apoio por Bolsonaro dos integrantes do chamado Centrão, a partir da concessão de cargos, emendas e outras benesses. Neste momento, não parece haver votos suficientes para a aprovação do impeachment. E é claro que em caso de derrota, Bolsonaro sairia fortalecido. Mas na falta de qualquer outra via para abreviar seu mandato, há quem aposte no recurso mais atrevido – o impeachment -, contando com a possibilidade de atrair os votos necessários por meio da pressão da opinião pública ao longo da tramitação do processo.
Independentemente de qualquer previsão de resultado, o fato é que a eleição do sucessor de Rodrigo Maia só ocorrerá em 1º de fevereiro de 2021. Ou seja, daqui até lá, Maia tem tinta na caneta e assento na cadeira de presidente da Câmara. Será uma ingenuidade achar que sairá dela de forma absolutamente tranquila e transferirá o cargo ao sucessor sem deixar uma marca própria, um carimbo do tipo: “Maia passou por aqui”. No mínimo, se estiver mirando a história e o futuro, como parece, deve estar cogitando na possibilidade de por o impeachment para andar, antes de ir embora.
Ah, está pensando, sim. Inclusive porque, se o impeachment viesse a ser aprovado, ele nem poderia ser acusado de conspiração em proveito próprio, porque não teria mais o mandato de presidente da Câmara que lhe permitiria ocupar o Palácio do Planalto caso caísse a chapa inteira e o vice Hamilton Mourão fosse igualmente desapeado. Ao mesmo tempo, com a proximidade da era da vacinação, é possível, sim, deslocar o foco do Congresso para uma questão igualmente séria e decisiva para o futuro do país: a manutenção de Bolsonaro no poder. Até porque Bolsonaro e pandemia são temas que estão intrinsecamente imbricados.
Comprovadamente, o governo negacionista do capitão só vem contribuindo para o agravamento da doença no país. Sua permanência na cadeira de presidente só eleva o risco de elevar seu cacife rumo à reeleição. A possibilidade de sua permanência é fator de forte apreensão entre os analistas diante do que Bolsonaro já causou ao país e do que ainda poderá causar, se for mantido na cadeira não mais por um acaso como o que garantiu sua eleição em 2018, mas pela vontade popular em sua plenitude. Aí é onde mora o perigo, porque o capitão poderá se sentir fortalecido. E se animar a alçar voos mais atrevidos na concretização dos sonhos absolutistas que sempre acalentou.
Convenhamos: se antes de limpar as gavetas Maia puser o impeachment pra andar terá feito jogada digna de um Kasparov, garantindo um lugar de honra na história ao colocar o rei em risco de xeque-mate. E vale a pena insistir: ninguém poderá acusá-lo de oportunismo, pois não será beneficiário de absolutamente nada. Agora é com ele. Basta uma assinatura e a bomba explode.
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