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A ideia em um segundo
Aspirações pelo impeachment crescem na sociedade e no Legislativo. Contudo, sua viabilidade depende de cálculos de conveniência das principais forças políticas e da pressão social. Na ausência de uma “estratégia Mourão” muito clara e segura ou de uma degradação maciça da popularidade de Bolsonaro, parece mais provável que os dois próximos anos assistam a iniciativas de desgaste do governo, com CPIs por exemplo, mas sem articulações fortes o bastante para apear o presidente do cargo. A exploração de oportunidades na máquina pública e as eleições de 2022 devem nortear as ações dos políticos.
Há três grandes elementos relacionados ao impeachment. O primeiro refere-se à discussão jurídica, o segundo conjuga a necessidade moral e a gerencial e o terceiro diz respeito à conveniência política. Os três trabalham em conjunto, mas apresentam algumas características distintas.
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Aspectos jurídicos
Juridicamente, um processo de impeachment precisa fundamentar-se em um ou mais crimes de responsabilidade. Tais crimes, definidos pela Lei 1.079/1950, incluem diversos atos que podem facilmente ser atribuídos ao presidente: hostilizar nações estrangeiras, tentar impedir de algum modo o funcionamento do Congresso, tentar subverter a ordem política e social, faltar com o decoro próprio do cargo, expedir ordens contrárias a disposições constitucionais, entre outros.
Mas a literatura jurídica deixa claro que essa é uma avaliação eminentemente política sobre violações a princípios da ordem constitucional e democrática que caracterizem a inadequação da autoridade ao exercício de sua função. Trata-se assim de juízo com grande margem de discricionariedade.
Contudo, mesmo que assim não fosse, a interpretação jurídica não parece óbice a ser considerado com tanto rigor nos tempos de hoje, bastando lembrar que o STF se deu ao descrédito de julgar uma possível reeleição das presidências do Legislativo diante de cláusula constitucional clara e direta que a veda. O fato de a reeleição ter sido apoiada por cinco supremos magistrados mostra o quão flexíveis as decisões políticas da corte são, movendo-se à conveniência. Num processo de impeachment que venha das ruas e do Congresso, o tribunal reagiria dentro da acomodação política conveniente que lhe marca.
O imperativo moral e a gestão da pandemia
A eventual necessidade moral e gerencial de um impeachment põe em questão o resguardo de valores humanitários e democráticos, a condenação de posturas de descaso com a vida e a saúde da população e a busca de um melhor trato com a pandemia e outros valores como a preservação do meio ambiente e dos direitos humanos.
O repositório dessa força moral é a sociedade, ator com interesse e legitimidade para avançar tais bandeiras. Valem os movimentos organizados e principalmente o sentimento e a vocalização difusa e espraiada da população cobrando mudança de rumos e a saída dos mandantes.
A conveniência política
Por fim, o elemento da conveniência política, a ser avaliado pelo Congresso Nacional, a quem cabe iniciar, instruir e arbitrar o processo.
O primeiro elemento da conveniência é o mais fraco deles. Refere-se à defesa dos princípios democráticos e constitucionais. Apenas uma minoria de parlamentares se pauta principalmente por tal motivação, seguindo convicções e valores e mantendo uma postura principiológica.
O elemento definidor da conveniência política é o depois. Ou seja: quais serão os possíveis efeitos da conquista e da manutenção do poder derivado do impeachment.
Desde maio de 2020 o governo Bolsonaro realizou uma nova acomodação de forças. Até então os sentimentos políticos da parcela mais pragmática e fisiológica do Legislativo encontravam-se transtornados devido à distância dos cargos governamentais. A grande mudança foi a entrada do Centrão no governo, dando um seguro contra o impeachment ao presidente que nas semanas anteriores se juntara aos seguidores que nas redes e nas ruas pregavam abertamente o fechamento do Congresso, do Supremo, assim como o fechamento de veículos de comunicação e a prisão de políticos e jornalistas.
De lá para cá tem-se uma nova configuração. A oposição de esquerda e centro-esquerda continua onde sempre esteve: minoritária e engolfada numa luta interna que ainda não arrefeceu. Ela tem apontado as inúmeras agressões do governo a valores caros ao seu eleitorado, mas não apresenta um projeto agregador capaz de conquistar para si um posto de destaque e erguer-se da planície. Trava batalhas, mas, além da perene busca pura e simples do poder, não apresenta motivo superior para a guerra.
Um centro arisco a Bolsonaro cultiva dois grandes projetos: realizar as reformas econômicas pró-mercado e viabilizar um candidato de “direita civilizada” que seja competitivo em 2022. Para o que resta do mandato de Jair Bolsonaro, o primeiro é quimera, enquanto o segundo se move como possibilidade – ainda não é tempo de conhecer certezas, o que deve ocorrer apenas no primeiro trimestre de 2022.
O Centrão, por sua vez, iniciou o festim à mesa dos governos fracos e sem rumo. Conseguiu cargos no Executivo e Judiciário, aumentou seu controle sobre o orçamento e, se se considerava órfão há um ano, agora é o filho pródigo que volta e está com os olhos sobre a herança. O protagonismo total no Legislativo está ao alcance das mãos com a provável vitória de Arthur Lira (PP-AL) na disputa pelo cargo hoje ocupado por Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Maquiavel como guia
Homenageando Maquiavel, esqueçamos aqui a moralidade e fiquemos com a realidade da conquista e da manutenção do poder.
Em levantamento de campo realizado entre os últimos dias 20 e 21, o Datafolha constatou a estrondosa queda de popularidade de Bolsonaro em relação à pesquisa anterior, feita em dezembro. A sua aprovação (ótimo e bom) caiu de 37% para 31%. A rejeição (ruim e péssimo) cresceu de 32% para 40%. O declínio está associado tanto ao fim do auxílio emergencial, que corrói o prestígio presidencial entre os mais pobres, quanto à incapacidade do governo para tomar providências literalmente vitais, como a adoção de medidas preventivas internacionalmente recomendadas contra a covid-19 e a incompetência para colocar vacinas à disposição da população, fatos de forte impacto negativo na classe média e nos segmentos com maior grau de escolaridade.
Apesar da queda, o presidente conserva perto de um terço de aprovação popular, faixa que dificilmente o tornaria vulnerável a uma ação do Legislativo. Como mostrou o ex-presidente Michel Temer, poupado duas vezes pela Câmara de responder a investigações criminais que provocariam o seu afastamento do poder, baixíssimos níveis de aprovação não geram necessariamente impedimento. Impopularidade é condição necessária, mas não suficiente. Contudo, a partir do limiar mal definido entre 30% e 20% de aprovação, as portas podem se abrir e a máquina pôr-se em movimento. Assim, à medida em que o governo Bolsonaro afunda mais na pandemia e na crise da vacinação, crise ladeada por uma economia que cresce pouco e frustra desempregados e empresários, tudo pode acontecer.
A oposição ainda não tem clareza do que virá em 2022. Certamente, o tema econômico terá papel central na eleição. Mas ainda é cedo para saber qual será a viabilidade de seus candidatos ou mesmo se ela vai se dispersar ou buscar uma ampla aliança em torno de uma só candidatura. O discurso do impeachment garante plateia e bandeira, mas não parece ser agora a prioridade das forças oposicionistas, que foram mal nas eleições municipais e tentam agora acumular forças para a disputa eleitoral do ano que vem.
A oposição pode manter-se acalentando a ideia do impeachment sem embarcar de fato nesse projeto. É o que defendem alguns parlamentares, para os quais centrar fogo na luta do impeachment traria o risco de ver Bolsonaro sobreviver com vigor renovado. É uma tese que outros parlamentares contestam com o argumento de que Trump e Crivella demonstraram na prática que mesmo um processo frustrado de impeachment põe a nu fragilidades do governante que terminam por dificultar ou mesmo inviabilizar por completo sua reeleição.
Por isso os oposicionistas mais pragmáticos já indicam um caminho possivelmente mais interessante para esse campo político: pôr em funcionamento CPIs longas e desgastantes para o governo, brandindo a arma do impeachment sem nunca usá-la para valer.
Para o centro não bolsonarista, o perigo vem dos dois lados. Um impeachment muito bem-sucedido, a partir de grande movimentação das ruas, pode abrir as portas para a esquerda; já um fracasso iria enfraquecê-lo diante do Centrão bolsonarista. A forma reticente com que Simone Tebet e Baleia Rossi, os principais candidatos não bolsonaristas à presidência do Senado e da Câmara, tratam o impeachment mostra a cautela de ambos. Algum aceno fizeram à oposição, mas sem maiores compromissos.
Por fim, o Centrão – sempre capaz de se superar no pragmatismo e no realismo – deve mover-se com o olho na calculadora dos ganhos. Suas variáveis são tempo para o final de mandato de Bolsonaro, apoio popular ao impeachment e existência de alternativa conservadora para os acolher.
No curto prazo, a grande questão para o Centrão seria: diante de um Bolsonaro em degradação, seria possível manter os ganhos e principalmente avançar numa presidência de Hamilton Mourão? Até aqui tem prevalecido a lógica externada com a franqueza que só o off garante por um dos principais líderes do grupo: “Não vamos trocar o capitão pelo general”. O pressuposto é que a negociação de favores políticos como nomeações e pagamento de emendas orçamentárias rende resultados melhores quando do outro lado da mesa está Bolsonaro e não o seu vice.
Não se viu até o momento da parte de Mourão uma movimentação de quem se apresenta como efetivo aspirante à vaga do titular. Uma atitude diferente, sobretudo sinalizando ganhos para a ala fisiológica do Congresso, acompanhada do desgaste presidencial e da ajuda das ruas (por enquanto, escassa), mudariam totalmente o quadro atual – o impeachment seria rápido.
No médio prazo, outras variáveis entram na conta. Hoje, o Centrão pressiona por mais cargos no governo, como o ambicionado Ministério da Saúde, e ainda tem bastante espaço a conquistar das mãos dos ministros ideológicos (como Ernesto, Damares e Salles) e dos militares. As forças, portanto, estão postadas ao lado de Bolsonaro. À medida em que consigam mais cargos, menor é o compromisso com mudanças via impeachment ou mesmo com a permissão para o funcionamento de CPIs incômodas ao Palácio do Planalto. Por outro lado, quanto mais se aproxima o final do mandato, mais importante é para os políticos do Centrão buscar alternativas para sobreviverem após as eleições de 2022.
Caso Bolsonaro mantenha-se forte e competitivo eleitoralmente e o Centrão domine boa parte do latifúndio governamental, não haveria razões para desembarque. Caso Bolsonaro vá se enfraquecendo, por um lado o Centrão pode aumentar ainda mais suas exigências de cargos e verbas e por outro pode estrategicamente abrir oportunidades de desgaste ao presidente, voltando ao tema da CPI. Seria algo como exaurir os benefícios e depois abandonar o barco.
O fato é que a variável tempo corre a favor da permanência de Bolsonaro até 2022. O desprestígio popular vai recrudescer? Quando? Se isso ocorrer, coincidirá com o “prazo” da fatura que o Centrão deverá cobrar se vencer na Câmara? Esse período tomaria todo o primeiro quadrimestre do ano. Iniciado depois disso, um processo de impeachment não conseguiria dar resultados antes do final do ano.
Por tudo que está posto, excluídos fracassos retumbantes da vacinação e da economia e um total naufrágio da popularidade de Bolsonaro, o melhor para todos os grupos do Legislativo é desgastar Bolsonaro sem apeá-lo do poder. Para a oposição e o centro não bolsonarista, desgastá-lo torna a extrema-direita menos competitiva em 2022 e mantém os grupos em evidência. Para o Centrão bolsonarista, trata-se de deixar a presa mais anêmica e assim mais facilmente manipulável. Numa hora dessas, Centrão e o centro não bolsonarista voltariam a conversar com olhos em 2022.
Os maiores riscos ficam para a democracia. Tolerar Bolsonaro e suas investidas contra a saúde pública e a ordem constitucional é alargar o campo para abusos futuros, que podem ser sempre mais graves à medida que o tempo avança. Quem imaginaria um presidente que, entre outras coisas, foi capaz de usar a ideologia como argumento para recusar vacinas em plena pandemia? Mas aí a gente se acostuma e segue a vida, pedindo em segredo ao travesseiro para salvar nós mesmos e as pessoas ao redor das estatísticas que enlutaram – por ora – mais de 220 mil famílias.
Termômetro
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Geladeira
O Conselho Federal de Medicina (CFM) protagoniza um dos momentos mais tristes dos seus 70 anos de existência. Criado para regular a prática médica, ele tem como missão institucional “promover o bem-estar da sociedade”. Mas se omite diante da sucessão de barbaridades cometidas pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo Ministério da Saúde e por vários gestores estaduais e municipais que, neles inspirados, atuam na contramão das recomendações da Organização Mundial da Saúde e das políticas dos governos mais bem-sucedidos no combate à covid-19. A pretexto de preservar a autonomia do médico, o CFM nada faz contra profissionais de saúde que, sem formação adequada para tal, prescrevem cloroquina e outras drogas embaladas em algo que é pura enganação, o “tratamento precoce”, que continua sendo incentivado à larga pelos bolsonaristas.
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Chapa quente
A ciência brasileira tem dado sucessivas provas de resiliência e eficácia. Confinada a instituições públicas castigadas por cortes de verbas, ela tem sido constrangida por patrulhas digitais que passaram a perseguir alguns dos seus nomes mais notáveis, simplesmente porque dominam e difundem o conhecimento científico acumulado sobre o vírus Sars-CoV-2 e as melhores formas de enfrentá-lo. Apesar do negacionismo e da infinita incompetência governamental para adquirir e tornar disponíveis insumos importados, os cientistas nacionais são a luz em meio às trevas que marcam as políticas de combate à pandemia no Brasil. Com destaque, claro, para as duas instituições à frente da produção de vacinas contra a covid-19 no país: o Instituto Butantan, de São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio.
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