Em coletiva concedida nessa quinta-feira (26), o presidente Jair Bolsonaro fez piada do rompimento anunciado na véspera por um de seus principais aliados, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). “Sou apaixonado pelo Caiado. Acho que tudo isso vai ser esquecido e vamos continuar namorando, ‘heteramente’ [sic] falando”, disse Bolsonaro, aos risos. Mas a convicção demonstrada pelo presidente de que o “namoro” será reatado se choca com as palavras do agora ex-aliado. Em entrevista ao Congresso em Foco, Caiado acusa Bolsonaro de usar a crise do coronavírus para tirar proveito político, ignorando o número de mortes que isso possa acarretar, e esconder o fracasso da economia em seu governo.
Para o líder goiano, Bolsonaro demonstra ignorância sobre o covid-19, faz de maneira oportunista oposição ao seu próprio governo, foge de suas responsabilidades como presidente e tenta empurrar sobre os ombros dos governadores o insucesso da política econômica do ministro Paulo Guedes.
“É melhor a gente desarmar o espírito do que continuar com essa situação conflituosa, apesar de que essa situação conflituosa dá ganhos políticos ao presidente. Se você sabe que vai ter desemprego, falência, óbitos… Como os óbitos não serão contabilizados para o presidente, ele vai estar em condição de dizer que a economia explodiu e o desemprego aumentou. Poderá dizer: ‘Taí, avisei, os governadores não me atenderam. Isso é um fato. Viram, eu avisei’”, afirmou Caiado.
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Contrariando todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), Bolsonaro tem atacado a quarentena imposta por governadores para conter o avanço do covid-19, que matou quase 80 pessoas, segundo os últimos dados oficiais, no país. Segundo ele, a vida deve voltar à normalidade, porque, do contrário, o confinamento vai arrebentar com a economia local. “Eu já fiz a minha parte, alertando. Com as palavras duras ou toscas, mas verdadeiras”, disse ontem o presidente.
“Acho que, como ele sabe que a política do Guedes deu água, agora a muleta dele é o coronavírus. Seria muito mais bonito ele falar as coisas como elas são. Dizer que a política econômica do governo não deu certo. Dizer: ‘Olha, não tenho como repassar o colapso da economia para os governadores. Todos temos de estar juntos’. Ele não pode nos desautorizar”, criticou o governador, um dos primeiros a determinar o fechamento de indústrias, estabelecimentos comerciais no estado.
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Segundo Caiado, Bolsonaro poderia assumir a responsabilidade e acabar com a quarentena em todo o país se o seu interesse não fosse o de constranger os governadores. “Se o presidente quiser, não teria dificuldade de colher assinatura para uma PEC retirando dos estados a responsabilidade pela saúde pública e aí ela fica sob responsabilidade dele. Isso aconteceria. Ele não pode falar uma coisa e o governo falar outra. É o melhor dos mundos para ele. É mordomia de casado com regalia de solteiro.”
Para o governador, Bolsonaro deveria esquecer divergências políticas neste momento. “Posso dizer que me reuni na sede do governo pessoas que nunca imaginei na vida que eu as receberia. Acho que quando se trata de problema maior, não é só distribuição de verba. É muito mais. ‘Gente, tudo bem, vamos continuar nossa briga em 2022. Agora nós vamos tratar do coronavírus’.”
O primeiro indício de esgarçamento da relação entre Caiado e Bolsonaro foi dado em 15 de março, quando o presidente, ainda com suspeita de covid-19, contrariou o protocolo e cumprimentou apoiadores em ato convocado em defesa de seu governo. A 200 km do Palácio do Planalto, em Goiânia, o governador saía às ruas para pedir aos manifestantes que voltassem para casa para evitar a infecção. Foi vaiado por bolsonaristas. “Essa é minha ordem e minha ordem será seguida. Não preciso dos seus votos. Eu sou médico, eu trato é de vidas”, discursou.
Na última segunda (22), ele foi até o estádio do Goiás, onde idosos se vacinavam, para fazer um apelo. “Fiquem em casa. Vocês têm um risco maior de ter um problema respiratório”, clamou o governador pelo megafone.
Um dos principais responsáveis pela indicação de Luiz Henrique Mandetta para o Ministério da Saúde, Caiado defendeu que o deputado licenciado não deixe o governo enquanto perdurar a crise. “Não tem como ele sair do ministério. Seria um ato de covardia e omissão nessa hora”, considera.
Nessa quinta-feira, Goiás registrou a primeira morte pelo coronavírus – uma senhora de 66 anos, que tinha outros problemas de saúde. O estado registrou até agora 39 casos de infecção. Na entrevista a seguir, o governador goiano diz que a quarentena no estado será desfeita de maneira gradual e diz que sua preocupação é com o Entorno do Distrito Federal, onde vivia a primeira vítima fatal da doença. A região é carente de serviços públicos e sofre historicamente com o jogo de empurra-empurra entre as duas unidades da federação.
A seguir, o vídeo do momento em que Caiado tenta impedir manifestação pró-Bolsonaro no último dia 15. Logo abaixo, a íntegra da entrevista com o governador:
Congresso em Foco – Governador, Goiás registrou hoje a primeira morte associada ao coronavírus, mas não aparece na relação dos estados mais afetados até o momento. A quarentena no estado está dando certo? A população compreendeu a necessidade de ficar em casa?
Ronaldo Caiado – Atribuo isso à quarenta, embora a região do Entorno do Distrito Federal deva ser a mais fragilizada, porque não tenho estrutura hospitalar compatível com 1,2 milhão de pessoas que moram na região. E como Brasília teve contaminação muito rápida, isso põe em risco meu pessoal do Entorno. É com isso que estou mais preocupado.
Qual é o maior ponto de preocupação em Goiás?
Em Goiás é o maior foco de preocupação. Tem as regiões mais volumosas, como todo o Entorno de Goiânia, um universo de 2,5 milhões de pessoas, o dobro do Entorno. Mas em Goiânia tem a condição minha de ter estrutura. Tem mais poder de fogo.
Há alguma parceria com o DF?
Eu liguei ao governador para dizer a ele… Mas só que realmente esse caso ontem de Luziânia. Mas aí não abriram espaço para ela em Brasília. Tiveram de deslocá-la para Goiânia. Quando chegou, já estava morta.
Falta interação maior entre os dois governos?
Não sei como está a situação também de leito no Distrito Federal. Como Brasília teve um pico maior, não sei como está, não posso falar, não sei como está a situação dele [governo do DF] de vagas em UTIs. Ela atestou positivo para o coronavírus e tinha várias comorbidades. Ela era todo aquele perfil que não podia de maneira nenhuma estar naquele momento contaminada. Tinha insuficiência renal, era cardiopata. Deu exame positivo para dengue. Agrupou todas as complicações quando teve a contaminação.
Há previsão de quando essa quarentena começará a ser desfeita no estado? A liberação seria gradual?
Nossa quarentena está definida até 4 de abril. Aí a gente já terá o primeiro mapa, o que podemos liberar, onde temos estrutura. Podemos ir adiando ou abrindo. Quando chegar lá na frente podemos voltar a ter que baixar nova quarentena. Como é um processo cíclico, vamos ter que ir avaliando. Uma hora pode, depois a gente reflui…
Quais serão os primeiros a sair da quarentena?
Um dos pontos que vamos abrir é para mineradoras, que é um pessoal fica mais a distância, definindo faixa etária, exigindo refeitórios. Também devemos abrir para obras de infraestrutura principalmente fora das cidades. Avaliar, por exemplo, regiões que tenham boa cobertura que eu possa garantir o retorno, dependendo da faixa etária do aluno, e também dos professores com idade máxima de 50 anos, voltando a dar aula. É algo que vai devagar, gradualmente. Aí vamos vendo como abrir mais. Estamos dando conta de suportar a chegada nos hospitais. O sistema hoje está comportando. Vamos ver o volume de pacientes não contaminados, de pacientes com infecções respiratórias ocupando leitos hospitalares. Não posso colapsar minha rede.
O presidente e entidades ligadas à indústria, ao comércio e ao sistema financeiro têm se oposto à quarentena, alegando que as consequências serão terríveis para a economia. Se isso prevalecer, essa poderá ser a maior tragédia sanitária da história do país?
Estou lutando para que isso não aconteça em Goiás. Mas hoje, enquanto tiver essa responsabilidade sobre os meus ombros, eu vou tomar as decisões calcadas em base científica e técnica. Se amanhã, quem sabe, houver uma ação do próprio governo federal… O presidente não pode fazer oposição ao seu próprio governo. Ele não pode falar uma coisa, o vice e o ministro falarem outra. Se sou governador, meu secretário da Saúde e meu vice temos de tomar decisão conjunta com base científica e técnica.
Que atitude ele poderia tomar?
Se o presidente quiser, não teria dificuldade de colher assinatura para uma PEC retirando dos estados a responsabilidade pela saúde pública e aí ela fica sob responsabilidade dele. Isso aconteceria. Ele não pode falar uma coisa e o governo falar outra. É o melhor dos mundos para ele. É mordomia de casado com regalia de solteiro. Tem de saber o que ele é. Então vamos baixar essa regra. É para liberar todo mundo… Ele sabe que nós governadores não vamos liberar, porque tudo vai recair sobre nós. Tinha um médico do interior que diziam que nunca errou o sexo da criança. Ele dizia: vai ter menino e inseria na ficha da mulher menina. “Então o senhor errou.” Você compreendeu errado. Escrevi menina. O que não dá nessa hora é ter dois pesos e duas medidas. Se você quer que seja liberado geral, tudo bem. Manda o Ministério da Saúde baixar regra que está liberado geral. A gente pode identificar por aqui, o Congresso revoga o inciso do 12 do artigo 24 da Constituição que manda a gente ter essa responsabilidade e alguns parágrafos e incisos da parte da seção da saúde que são de responsabilidade dos municípios, aí fica uma regra nacional. Ele faz, ele governo assume. Aí não terei de responder por omissão ou descuido à vida.
Ele está tentando transferir a responsabilidade para os governadores?
Acho que, como ele sabe que a política do Guedes deu água, agora a muleta dele é o coronavírus. Seria muito mais bonito ele falar as coisas como elas são. Dizer que a política econômica do governo não deu certo. Dizer: “Olha, não tenho como repassar o colapso da economia para os governadores. Todos temos de estar juntos”. Ele não pode é nos desautorizar. Ele tinha de fazer o seguinte: Ministério da Saúde, de acordo com avaliação técnica, manda que a partir de agora por determinação do presidente da República o critério seja de liberar total. Ponto. É uma ordem maior. Alguns podem resistir. Mas temos de assumir a responsabilidade dos 220 milhões de brasileiros, que ele também assuma. Não posso ouvir o ministro da Saúde falar uma coisa, o vice e o presidente terem outra fala. O governo precisa se organizar.
Como?
Fazer a função de governador de oposição é muito confortável. Se eu mesmo sou oposição ao meu governo, é uma maravilha. “Ah, os prefeitos não fazem isso. Aí eu mando de cá, sem fazer nada.” Não dá para ser esse jogo. Estamos tratando de saúde pública. A gente tem de ter total lealdade aos assuntos, transparência. Ele pode dizer: “Vou pedir ao Congresso que reveja essas responsabilidades que recai sobre os estados para mim e pronto acabou.” Amanhã não posso ser cobrado por quantas pessoas vão a óbito. Nem tenho como responder por elas. Não posso me submeter às regras que o presidente fala, que não são as que o Ministério da Saúde determina. Qual é o controle? Esse é um momento de muita delicadeza e fragilidade.
Como o senhor vê o presidente Bolsonaro hoje? Ele está se isolando politicamente?
Isso é uma análise de foro pessoal. Ele tem base de sustentação muito forte, é realidade. Indiscutivelmente tem a condição mais forte em qualquer eleição hoje no Brasil. Vamos dar a César o que é de César. Vamos deixar o tempo passar. Vai ver lá na frente se é a ciência que está certa ou não. Essa posição não pode ser refeita por ele, sendo que não é compartilhada pelo ministério dele. Tem de ser uma coisa vertical.
Muito se comentou ontem que o ministro Mandetta modulou o discurso, ao apontar exageros na quarentena. O senhor defende que ele teria de se demitir depois de ter sido confrontado, desautorizado pelo presidente no pronunciamento de anteontem?
Todos comentaram isso comigo. Não tive oportunidade de conversar com ele depois da entrevista. Falei com ele antes. Tendo a oportunidade, vou falar para ele que essa posição entre o presidente e o ministério é dúbia, ela é ruim, temos de ter avaliação técnica. É para liberar? Então libera. Diremos que estamos cumprindo determinação do Ministério da Saúde, determinada pelo presidente da República.
O ministro deve continuar mesmo sendo desautorizado pelo presidente?
Nós médicos temos a tese de que, se o doente complica, você não sai cabeceira do paciente. É um mandamento para nós. Não tem como ele sair do ministério. Seria um ato de covardia e omissão nessa hora. Ele deixou claro que não vai renunciar. Apoiei a decisão. Ele se afastaria se fosse contaminado com essas andanças dele. Ou se fosse demitido. Ele não abre mão dessa função. Ele não precisa de cargo. Tem uma história de vida. Não faria uma troca dessa.
Quais principais medidas que o governo federal poderia adotar em socorro econômico aos estados?
Sinceramente acho que, nessas horas, quando se trata de coronavírus… Eu mesmo posso dizer que me reuni na sede do governo pessoas que nunca imaginei na vida que eu as receberia. Acho que quando se trata de problema maior, não é só distribuição de verba. É muito mais. “Gente, tudo bem, vamos continuar nossa briga em 2022. Agora nós vamos tratar do coronavírus.” Isso é mais importante do que repassar dinheiro. Não chegou nada. Quando Paulo Guedes diz que vai mandar dinheiro, há uma distância secular.
Não é hora de priorizar esse assunto econômico?
É melhor a gente desarmar o espírito do que continuar com essa situação conflituosa, apesar de que essa situação conflituosa dá ganhos políticos ao presidente. Se você sabe que vai ter desemprego, falência, óbitos. Como os óbitos não serão contabilizados para o presidente, ele vai estar em condição de dizer que a economia explodiu e o desemprego aumentou. Poderá dizer: “Taí, avisei, os governadores não me atenderam. Isso é um fato. Viram, eu avisei”. Sou muito direto nas minhas coisas. Em relação à saúde, ele não tem autoridade. Se quem fala pela economia é o Paulo Guedes, por que não diz que quem fala pela saúde é o Mandetta. Por que se meter no assunto? Ele pode ter até alguma ideia, mas não dá para opinar sobre o sistema de quarentena, chamar a doença de “gripezinha” e “resfriadinho”, sobre qual é o protocolo de remédio que deve ser aplicado em paciente. Não é a praia dele de jeito nenhum.