O objeto de pesquisa de Leonardo Avritzer é a democracia brasileira – então não é surpresa que 2020, o segundo ano de Jair Bolsonaro e o bolsonarismo no poder, seja um ano singular para se analisar.
Alguns pontos são claros para o cientista político, nesta entrevista feita por telefone: mesmo que a liberdade de expressão seja garantida, a ideia de que um presidente possa proferir desejos antidemocráticos é, por si só, problemática. E as atitudes do presidente, com seus arroubos autoritários, esticam a corda da democracia.
“A tendência do Bolsonarismo é tensionar a institucionalidade democrática no limite”, explicou Avritzer. Ele também argumenta que Legislativo e Judiciário até tentaram, mas falharam durante a pandemia de Covid-19 em podar os instintos antidemocráticos do Executivo.
O professor, titular de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais, lançou em junho o livro “Política e Antipolítica”(Ed. Todavia), que analisa justamente os arroubos antidemocráticos do presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a pandemia do coronavírus. Este já é o segundo livro do professor durante o atual governo: em “O Pêndulo da Democracia”, lançado ano passado, Avritzer busca entender como a democracia brasileira conseguiu mudar tão rapidamente, passando de protestos de 2013 à eleição de Bolsonaro em apenas cinco anos.
A seguir, trechos da entrevista:
Pode se considerar que houve momentos em que Bolsonaro atacou a democracia?
É importante dizer que o presidente Bolsonaro tem problemas com a democracia. Seja por elogio a torturadores, elogios a um período da história do Brasil que não foi democrático – entre 1964 e 1985, quando o Congresso Nacional foi fechado das vezes. Então, evidentemente, a ideia de que em uma estrutura de pesos, contrapesos e direitos, não é esse o repertório político do presidente.
Mas mais que isso: neste momento da pandemia, vimos questões importantes. O presidente não ataca as instituições democráticas numa base semanal. Ainda que se possa, eventualmente, atribuir isto a uma dinâmica de liberdade de expressão, seria um equívoco. É evidente que uma liberdade de expressão ampla pode permitir que pessoas defendam ideias antidemocráticas – mas a ideia de que o presidente seja patrocinador de desejos não democráticos já está no próprio limite da ideia de democracia.
Bolsonaro já se definiu como um presidente anti-sistema. Se o sistema é considerado democrático, o presidente é automaticamente antidemocrático?
Não. Bolsonaro é um presidente anti-sistema, mas ele é antes de tudo um viabilizador do seu próprio poder pessoal. Ele é anti-sistema, mas foi deputado federal por 28 anos; é anti-sistema, mas todos os membros da família estão dentro do sistema de representação – os três filhos, no caso.
O Bolsonaro e o bolsonarismo possuem dois elementos: um é a concepção completamente pessoalizada do poder. Chamo a atenção, inclusive em meu livro mais recente, em um dia que o presidente sai do Palácio do Alvorada e diz: “Eu sou a Constituição’, lembrando as concepções pessoais próprias do regime anterior à Revolução Francesa.
Mas além de anti-sistema, o bolsonarismo também é uma encarnação de uma concepção tradicional e pré-democrática.
Neste livro mais recente, o senhor fala na criação de um “pós-bolsonarismo” no auge da pandemia, quando o presidente acentuou os ataques as instituições democráticas. Há a formação no país de um fenômeno como este? E como a pandemia influenciou neste movimento?
A afirmação minha da formação deste “pós-bolsonarismo” tinha a ver com um momento que o presidente parecia realmente isolado. Pelo poder Judiciário, pelo Congresso Nacional e com movimentações fortes contra ele nas redes sociais e nas ruas.
Esse momento que poderia ter levado a um “pós-bolsonarismo”, no final acabou estancado. De fato, foi possível estancar as crises do Bolsonarismo especialmente da maneira tradicional, mas em parte porque Bolsonaro cedeu. Há uma reação contra atitudes antidemocráticas dele pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, com isso, especialmente dois ministros que vinham contendo o Bolsonaro muito fortemente, Celso de Mello e Alexandre de Moraes, acabaram perdendo sacralidade no STF.
Além disso, voltou à tona uma estratégia mais pragmática do então presidente Dias Toffoli, que tem uma política de composição entre o Supremo e o Bolsonarismo.
É positivo para a democracia que o novo presidente da corte, Luiz Fux, siga este mesmo caminho de composição?
Claro que ainda é cedo para dizer que caminho tomará o novo presidente da corte – há indicações na imprensa de que o Fux buscará uma maior independência ao presidente Jair Bolsonaro. Mas Dias Toffoli acabou compondo com elementos pouco democráticos da tradição política brasileira.
Quais seriam estes elementos?
Começando pela maneira como ele chamou o general Fernando Azevedo para ser seu chefe de gabinete. Não só pelo que um general membro do Estado-Maior tem para aportar ao presidente do STF, mas também pela maneira como a presidência acabou aceitando conduzir, de forma ad hoc, a própria pauta do bolsonarismo. Estas duas atitudes fazem parte da maneira como Toffoli conduziu o STF.
Fux tende a ser um ministro mais forte e independente. Mais forte, quase todos os ministros do STF são em relação ao Toffoli, que já era um ministro fraco quando assumiu. Mas Fux tende a ser mais independente por dois motivos: por relações anteriores que ele tem com a Lava Jato e também maior liderança entre ministros do STF.
Me parece que o STF não precisa necessariamente compor com o presidente, assim como não precisa ser uma força majoritária – pela sua própria natureza, é uma Casa contramajoritária. Exatamente por isso a corte não precisa compor com o presidente.
Enquanto o Judiciário fez estes movimentos, o Congresso teve uma postura mais altiva contra Bolsonaro no início da pandemia – mas esta postura parece ter arrefecido. Que sensação que este movimento do legislativo trouxe para o sr.?
O Congresso começou bem durante a pandemia. Em primeiro lugar se percebeu que o Legislativo tinha que assumir prerrogativas que até poderiam ser do presidente inicialmente, como garantir a estabilidade financeira de uma parte muito vulnerável da população, pelo menos durante o período inicial da pandemia.
Mas, infelizmente durante a pandemia, o Congresso atuou muito bem e o presidente atuou muito mal. Faltou ao [presidente da Câmara] Rodrigo Maia se comunicar mais diretamente com a população em questões como o auxílio emergencial, e tentar mostrar a importância da autoria e das mudanças que o Congresso fez em relação à proposta do presidente.
À medida que a pandemia seguiu adiante, o presidente Rodrigo Maia acaba se tornando cada vez mais ausente dentro de uma política de contenção do Bolsonarismo. O Congresso acabou se comunicando bem com a população sobre o papel que ele, Congresso, deveria ter – tanto em relação à pandemia quanto à defesa da democracia neste período.
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Esta união entre o bolsonarismo e o Centrão, durante a pandemia, é natural dentro de um presidencialismo de coalizão? Este modelo de governo demonstra algum sinal de exaustão?
O presidencialismo de coalizão não passa de um método de governo onde a fragmentação política é extrema – onde representantes de partidos dariam apoio ao presidente no Congresso Nacional em troca de alguma representação ministerial. Não há nenhum problema nisso.
O problema é que: não para aí, e se dá um passo adicional rumo a um conjunto de trocas que são complicadas à própria legitimidade do Congresso e da democracia junto à opinião pública. Se analisarmos, por exemplo, a anistia das dívidas tributárias de igrejas, parece que a tese é do Congresso Nacional. Se analisarmos como parlamentares tentaram implementar políticas no Ministério da Saúde na própria pandemia, é também uma questão que não poderia ocorrer na prática de políticas normais.
A tendência do Bolsonarismo é tensionar a institucionalidade democrática no limite. Porque este sistema de apoios e trocas é um sistema insustentável aos olhos de uma opinião pública mais democrática. A impressão é que sim, o bolsonarismo coloca este sistema de presidencialismo de coalizão em xeque, demandando algum tipo de mudança.
E quando a tensão democrática nasce diretamente do presidente da República, qual seria o melhor remédio? Há outras alternativas além de um impeachment?
Primeiro que o presidente tem de ser impedido, pelo Congresso ou pelo STF, de realizar atos que claramente contrariam a institucionalidade democrática. Isso já aconteceu no passado: o Congresso não permitindo que Bolsonaro liberasse o porte de arma como ele queria, e o STF intervindo fortemente em um esquema de fake news que, ao que parece, é sediado no próprio Palácio do Planalto.
Ainda sim, o bolsonarismo consegue resistir a estas questões, e mesmo dando um passo adicional quando, por exemplo, vemos os últimos acontecimentos políticos no estado do Rio de Janeiro, onde parece haver uma junção entre presidente, Procuradoria-Geral da República e parte do Poder Judiciário de desarticular parte da oposição e tratar a oposição política ao presidente, no seu estado e no estado onde seus filhos fazem política. Isso é gravíssimo, e as instituições políticas e democráticas precisam se posicionar mais claramente por isso.
A palavra que eu uso aqui é “promiscuidade”. Se esta promiscuidade entre bolsonarismo, Procuradoria-Geral da República e Judiciário prevalecerem, temos novos riscos à institucionalidade democrática do Brasil.
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