A descoberta de trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS) no último dia 22, despertou novamente a atenção para essa prática abusiva e desumana. Apesar da revolta manifestada por vários da sociedade, os projetos que tratam do tema no Legislativo enfrentam uma tramitação lenta, que chega a quase 20 anos em alguns casos.
Um dos projetos mais antigos sobre o assunto é o PL 2668/2003, de autoria do ex-deputado Paulo Marinho (PSDB-MA), que propôs alterar o Código Penal par agravar as penas para os responsáveis pela prática criminosa. Pela proposta, a pena mínima para o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo passaria de dois para quatro anos; enquanto a de aliciar trabalhadores passaria de detenção de dois meses a um ano para quatro a oito anos de reclusão.
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O projeto de Marinho foi posteriormente juntado ao PL 5016/2005, de autoria do ex-senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Atualmente, o projeto tramita na Câmara dos Deputados com outros 28 textos apensados. A última movimentação no PL ocorreu em 2019, quando o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (PSDB-RJ), determinou que seria necessário a criação de uma comissão especial para analisar a proposta.
A maioria dos projetos propõe o aumento das penas e a aplicação de sanções econômicas para empregadores que submeterem os trabalhadores a condições análogas à escravidão, como a cassação do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e a proibição do acesso a incentivos fiscais, empréstimos e financiamentos por instituições financeiras públicas.
No entanto, também tramitam junto ao projeto propostas que podem minar o combate à exploração trabalhista. O PL 3842/12, do ex-deputado Moreira Mendes (PSD-RO), altera o Código Penal e muda a definição do que é considerado trabalho escravo. Pela redação no Código Penal, válida até hoje, é considerada condição análoga à de escravo submeter o trabalhador a “trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador”.
O projeto do ex-deputado já falecido retira do Código os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Na justificativa, ele afirmou que as expressões deixavam as decisões da Justiça sujeitas à subjetividade, uma vez que não são especificadas as condutas que poderiam ser classificadas como jornada exaustiva ou condições degradantes de trabalho. “A subjetividade na aplicação da norma no momento de sua autuação administrativa, por sua vez, leva ao baixo índice de condenações pela Justiça”, pontuou.
Em audiência pública da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural realizada no dia 21 de junho de 2022, o diretor da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Valter Pugliesi, apontou o PL 3842/12 como um “retrocesso legislativo que vai impactar justamente no trabalho de fiscalização e de combate ao trabalho escravo”. A audiência debatia o papel do Ministério Público no combate ao trabalho escravo.
Novos projetos
Após a repercussão do caso envolvendo os trabalhadores em vinícolas do Rio Grande do Sul, foram apresentados ao menos três novos projetos para coibir esse tipo de prática criminosa.
No Senado, Augusta Brito (PT-CE) apresentou uma proposta para que editais de licitações públicas estabeleçam percentual mínimo de contratação de trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão.
Na justificativa, a senadora pontuou que a proposta é uma ação afirmativa e que a mesma medida já é prevista para mulheres vítimas de violência doméstica e oriundos ou egressos do sistema prisional. “O presente projeto de Lei visa inserir os trabalhadores resgatados dessas situações e dá-lhes uma nova chance de poder trabalhar com dignidade e respeitos aos seus direitos. O problema é grave e deve ser enfrentado pelas autoridades públicas”, destacou.
Na Câmara, o deputado federal Felipe Becari (União-SP) apresentou dois projetos: um que propõe a expropriação das propriedades rurais e urbanas em que forem encontrados trabalhadores em tais condições, e outro que proíbe a concessão de empréstimos ou financiamentos com recursos públicos ou subsidiados pelo poder público para empregadores que cometem tais práticas.
Becari pretende solicitar na terça-feira (7) um encontro com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), para debater a tramitação dos projetos. “Não pretendo sair de lá nesta semana sem ter conversado com ele e ver o que a gente pode fazer para poder acelerar a apreciação e dar todo o mérito que merece essa causa urgente”, afirmou ele ao Congresso em Foco.
O deputado não descarta a possibilidade de apresentar um requerimento de urgência para os projetos e de costurar um acordo entre governo e oposição para garantir a aprovação, uma vez que as propostas foram bem recebidas na Câmara. “Acho que isso é uma questão super apartidária. A gente não tem que pensar em partido, em ser mais conservador, mais progressista. Não nada disso, a gente tá falando aqui de ser humano, de moral, de valores. A gente não pode então virar as costas e ficar inerte”, pontuou Becari.
Evoluções na legislação
Na avaliação do Ministério Público do Trabalho (MPT), o Brasil possui boas previsões normativas a respeito do conceito dos crimes de redução de trabalhador à condição análoga de escravo, mas ainda há espaço para a legislação evoluir.
O procurador do Trabalho Italvar Medina, vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), destaca que o país ainda não ratificou acordos importantes, como o protocolo da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata que trata de medidas preventivas ao trabalho escravo, inclusive sobre a devida diligência que as empresas devem ter em suas cadeias de produção; e o da Convenção 181 da OIT, que trata sobre requisitos a serem observados por agências de empregos.
“É importante que a nossa legislação preveja mecanismos mais concretos e mais efetivos para a responsabilização de grandes empresas quanto a monitoramento dos seus contratos, inclusive os contratos de terceirização, e também das suas cadeias de produção de modo geral”, destaca Medina. O procurador destaca que as grandes empresas devem “exercer um acompanhamento efetivo do cumprimento dos direitos trabalhistas em toda a cadeia produtiva e em todo o seu processo produtivo” para evitar adquirir matérias-primas oriundas de empresas menores que abusem de trabalhadores e cometam outros atos criminosos.
Medina ressalta que ainda não houve uma regulamentação para a Emenda Constitucional nº 81, que prevê a possibilidade de expropriação dos imóveis flagrados com trabalhadores análogos à escravidão como propõe o projeto do deputado Felipe Becari e outros que estão em tramitação no Congresso Nacional. “Apesar de aprovada em 2014, essa norma até hoje não veio a ser regulamentada por lei. O que tem dificultado que essa expropriação seja de fato seja determinada pelo Poder Judiciário”, reforça.
O procurador também defende um aumento nas parcelas do seguro-desemprego que são pagas aos trabalhadores resgatados em situação de escravidão. Atualmente, a lei prevê apenas três pagamentos. “É muito pouco para garantir a subsistência dos trabalhadores no momento imediato após o resgate, enquanto se negociam as demais repercussões trabalhistas”, avalia Medina. Atualmente, tramitam no Congresso projetos que ampliam esse pagamento, mas, assim como os que elevam as punições e legalizam a expropriação das terras das empresas, ainda não há previsão de quando serão pautados.