Diante de perseguições às instituições de ensino, ameaças por parte de estudantes e de militantes de extrema-direita e do risco de exposição de suas informações nas redes sociais, diversos professores de nível médio e superior no estado de Goiás relatam viver com medo de exercer a própria profissão. Uma onda de ataques à categoria preocupa as entidades de representação locais, que identificaram um responsável: o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO).
Citado nos relatórios do Google como o segundo perfil que mais lucrou em 2021 com a propagação de fake news sobre a pandemia no Youtube, Gustavo Gayer foi um dos militantes mais ativos na base de apoio do governo Bolsonaro. Em 2022, concentrou seu discurso de campanha na tese de uma suposta doutrinação de esquerda nas redes de ensino do Brasil, mesma pauta abraçada pelo ex-presidente para se eleger em 2018.
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Como parlamentar, seu discurso se intensificou. No início de julho, tornou-se alvo de uma ação da Advocacia-Geral da União após, em um podcast, defender que a dificuldade de implementação da democracia em países africanos se deve a uma suposta falta de inteligência da população local e da dita doutrinação no ambiente escolar.
A essa altura, porém, suas ações não mais se limitavam ao discurso conspiracionista. Desde março, Gayer é administrador de um site criado sob a premissa de “denunciar professores doutrinadores”. “Nós temos testemunhado ao longo dos últimos anos, das últimas décadas, uma ideologia que sequestrou o sistema de ensino brasileiro para incutir aos nossos filhos ideias que são completamente abjetas, antinaturais, contrárias a tudo aquilo que nós acreditamos”, justificou no vídeo de apresentação.
Na plataforma, são publicadas “denúncias” anônimas expondo o nome de escolas e as respectivas cidades. Seus apoiadores “denunciam” professores por abordar temas relacionados à inclusão da comunidade LGBTQIA+, assuntos históricos contrários à ideologia pregada pelo deputado, religião ou violência urbana. A mais antiga em destaque era de uma aula de história no Instituto Federal de São Paulo, onde o professor elaborou uma questão com base em uma charge do cartunista Carlos Latuff, autor constantemente abordado em questões de vestibulares e do próprio Exame Nacional de Ensino Médio (Enem).
A política de exposição a professores que abordam direta ou indiretamente assuntos relacionados a temas que divergem de interesses de grupos conservadores, mesmo quando exigidos nas grades de ensino, trouxe sérias consequências para a atividade de cátedra em seu estado.
PublicidadeDemissões forçadas
“Ele estimula alunos a desafiarem os professores, nos chama de burros, despreza nossos estudos, ele empodera alunos a serem violentos com professores. Na realidade, nós hoje somos reféns”, contou ao Congresso em Foco uma das professoras em Goiás que perderam o emprego graças à perseguição atribuída ao parlamentar. “Temos sofrido perseguições todos os dias nas faculdades privadas”, acrescentou. Temendo novos ataques, ela preferiu não se identificar.
No seu caso, a perseguição começou ao abordar o tema do racismo na aula de ciência política. O tópico era parte da grade curricular da matéria, que lecionava há quatro anos. Abraçando o discurso de que havia uma suposta doutrinação, um dos alunos começou a escrever ameaças contra ela e outra professora da mesma faculdade. “Ele ficava nos grupos de Whatsapp dos alunos dizendo o que faria conosco. Ia de tiro no rosto até surra. Criou o hábito de perseguir minha colega, frequentava os mesmos espaços que ela, xingava ela e o marido”, relatou.
Uma aluna, ao ver as ameaças no grupo, se assustou e revelou à professora. “Mostramos as capturas de tela para a direção, que optou pelo nosso desligamento e pela expulsão desse aluno”. Após esse episódio, ela tentou novamente lecionar em outro município, onde foi agredida por outra estudante. Desde então, desistiu de dar aula, e tenta se introduzir em outros setores.
Uma outra professora, em Goiânia, já sofreu de forma mais direta nas mãos do deputado. Também temendo perseguição, ela preferiu não se identificar. No seu caso, sequer foi perseguida por algo dito em sala de aula, mas sim pela forma como se vestiu em uma lição de história da arte para o ensino médio.
“Comumente, como eu sou professora de artes, eu costumo usar camisetas que remetem a história da arte, é algo comum no meu cotidiano. Eu tenho um colega com uma marca de camisetas, e eu costumo usar para divulgar o trabalho dele também. E foi o que aconteceu no dia em que o deputado expôs minha foto”, contou.
No último mês de maio, ela foi para a aula com a obra “Seja Marginal Seja Herói”, do artista Hélio Oiticica, estampada na camisa. A peça faz parte da grade de ensino do Ministério da Educação, e já foi utilizada tanto em questões de vestibulares de universidades federais quanto pela Universidade Mackenzie, uma das maiores no ensino superior privado em São Paulo.
Em suas redes sociais, Gayer divulgou a foto da professora com o rosto tampado. “Professora de história com look petista em sala de aula. Eu não sei nem o que falar sobre isso. Professora ensinando que ‘ser marginal’ é a mesma coisa que ser um herói”, acusou o deputado na legenda da publicação.
A exposição aconteceu pela manhã. “De tarde, recebi uma ligação de um dos donos da escola, em um tom extremamente agressivo, falando que eu tinha causado uma enorme dor de cabeça para ele. Eu não fazia ideia do que tinha acontecido. No mesmo instante, ele mandou a captura de tela da publicação do deputado, bem como dos ataques que a escola havia sofrido, porque ele marcou a escola”.
Diante do ataque, ela trancou as próprias redes sociais e procurou apoio jurídico e político para se proteger. “No dia seguinte, eu fui chamada para uma reunião na escola. Ficou acordado que eu escreveria uma nota explicando o que era a obra e o fato de ela ser parte da grade curricular obrigatória, bem como tema de questões de vestibular”, lembrou.
Confiante de que a situação estaria resolvida em breve, ela continuou dando aula em escolas e cursos pré-vestibular. Dois dias depois, o cenário se inverteu. “Eu estava em outra escola, quando recebi várias ligações do diretor. Como me assustei, parei a aula para atender o celular. Ele disse que ‘não posso continuar com você, porque se eu continuar eu vou quebrar, e não tem mais como você ficar na escola’”. Quando olhei o celular, vi que o deputado havia anunciado minha demissão nas próprias redes sociais, antes mesmo da escola me avisar”.
Ações judiciais
A perseguição atribuída a Gustavo Gayer contra professores chegou ao judiciário, onde tramitam ações contra ele por reparações de dano tanto por parte dos sindicatos goianos quanto por parte do advogado Alexandre Amui, que defende uma das vítimas expostas. Ele chama atenção para o fato do parlamentar sequer se preocupar em esconder as intenções ao tratar do assunto na esfera judicial.
“Nós ajuizamos uma ação coletiva contra ele, que tramita em Brasília. Na contestação dele, ele não nega nada. Ele apenas fala que foi o mote de campanha dele, porque ele foi eleito ‘para defender a família contra a doutrinação desses professores esquerdomarxistas’ e que ele é protegido pela imunidade parlamentar”, observou o jurista.
Amui disputa em defesa da vítima argumentando que a imunidade parlamentar não se aplica à conduta atribuída ao deputado. “A imunidade parlamentar foi criada exatamente para evitar atos de perseguição, como os que ocorreram em 1964”. O advogado chegou a conseguir uma decisão liminar proibindo Gustavo Gayer de falar sobre professores nas redes sociais. Na mesma semana, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se pronunciou abraçando o mesmo discurso do colega de partido.
Uma das entidades que buscaram na Justiça a compensação pelo dano causado aos professores foi o Sindicato Municipal dos Servidores da Educação de Goiânia, coordenado por Antônio Gonçalves. De acordo com ele, a campanha promovida por Gustavo Gayer viola diretamente a liberdade de cátedra, direito previsto no artigo 206 da Constituição.
“Ele, com esse tipo de prática, cria uma situação em que o professor fica cada vez mais acuado, cada vez mais fica refém de um controle externo. Não no sentido de críticas, das quais toda profissão precisa estar submetida no sistema republicano, mas pegando indivíduos isolados e querendo criminalizá-los individualmente para criminalizar de forma geral a categoria”, disse o líder sindical.
Gonçalves ressalta que as ações do deputado demonstram que ele não milita por uma “neutralidade” na educação, mas por uma adequação à sua própria pauta. Exemplo disso se deu com sua participação na Marcha contra o Aborto, no último mês de maio. “Esse mesmo deputado organizou a marcha junto a diversos secretários de educação, que levaram estudantes menores de idade sem consultar os pais para esse tipo de atividade”, afirmou. O próprio parlamentar divulgou um vídeo da manifestação em suas redes sociais, onde é possível ver ele interagindo com crianças em uniformes escolares.
Ataque à rede de proteção
Os relatos dos professores não se limitam às perseguições contra escolas ou indivíduos. Sara de Castro, secretária-geral do Sindicato dos Professores do estado de Goiás (Sinpro), presenciou ameaças por parte de militantes de Gustavo Gayer mesmo fora do ambiente escolar, em meio a um debate sobre a própria crise vivenciada pelos colegas.
Além dos sindicatos, professores da rede privada de Goiás se organizam em diversos coletivos. Um deles, o Tecendo o Amanhã, conta com parte dos diretores do Sinpro, incluindo a própria Sara. “Na época em que surgiram as questões relacionadas a esse deputado, nós vimos que muitas pessoas, personalidades, partidos, sindicatos e associações começaram a se posicionar a respeito. Mas nosso coletivo achou interessante ir além dessas questões, e decidimos produzir um evento que tratasse da liberdade de ensinar e aprender”.
O coletivo optou por organizar o evento sem citar o nome do deputado na divulgação, e por conduzir o debate sem tratar de indivíduos específicos. Mais de trinta pessoas apareceram na roda de conversa, que aconteceu em uma livraria em Goiânia. “Durante o evento, a administração da livraria veio nos contar de um fato. Eles estavam recebendo mensagens via Instagram e via Whatsapp de apoiadores do deputado, que estavam ameaçando ir para a porta e se manifestar contra o nosso evento. Alguns estavam com falas violentas, que iriam invadir a livraria, interromper o evento ou impedir nossa saída”, narrou.
Por precaução, a livraria fechou, e os professores seguiram debatendo no lado de dentro. “Na saída, fomos surpreendidos ao ver um vídeo gravado pelo deputado no dia do evento, em que ele estava na delegacia fazendo um boletim de ocorrência e mencionando uma reunião de professores”, relembrou Sara.
Resposta do deputado
Dias antes da publicação desta matéria, o Congresso em Foco acionou o gabinete de Gustavo Gayer, informando sobre a elaboração da reportagem e questionando se o deputado pretendia se pronunciar a respeito. O deputado não respondeu, mas se pronunciou em suas redes sociais. “A única coisa que fiz foi dar voz aos pais é mães de Goiás que não aguentam mais ver seus filhos serem doutrinados em sala de aula”, disse.