George Washington, general que comandou a independência americana e fora o primeiro presidente dos Estados Unidos, exerceu dois mandatos consecutivos. Quando todos esperavam nova reeleição com facilidade, Washington divulga seu discurso de adeus às atividades públicas. Uma das frases é emblemática: o amor ao poder atrai a propensão a abusar dele, pois isso predomina no coração humano, sendo suficiente para justificar a verdade da decisão de não ser novamente eleito.
Uma peça teatral muito famosa na última década, Hamilton, conta de forma romanceada a vida de Alexander Hamilton, outro herói da independência americana. No musical, uma frase é colocada na boca do rei George, quando soube que Washington não buscaria se perpetuar no poder. Exclama o rei: “Eu nem sabia que isso seria possível”. A atitude de Washington fora um marco na história do exercício do poder: o detentor do poder, com aceitação popular, cedendo espaço para a rotatividade do exercício da presidência.
Passados os anos, a propensão autoritária ressurge forte, especialmente entre nós, latinos. À direita e à esquerda. A tentação autoritária é democrática! Perdoem o oximoro. Se olharmos Chávez e Maduro na Venezuela, veremos manobras jurídicas para perpetuação no poder, com mudanças constitucionais. Se olharmos El Salvador, com Bukele, vemos que a Constituição daquele país em vigor não deixa mínima dúvida a respeito de ser inconstitucional a recondução do presidente.
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O artigo 75 da constituição salvadorenha expressamente declara a perda dos direitos de cidadania a “[q]uem assinar atos, proclamações ou adesões para promover ou apoiar a reeleição ou a continuação do Presidente da República, ou utilizar meios diretos destinados a esse fim”. E esse texto não foi aprovado de afogadilho para apenas impedir a reeleição de Bukele. É uma constituição de 1983, com última alteração em 2014. Bukele foi eleito sabendo da regra. Ainda assim, os Tribunais autorizaram sua reeleição.
Pouco importa o exímio trabalho de Bukele contra o crime. Louvável? Aplausos? Parabéns. Mas o uso de estratagemas jurídicos na América Latina beira o ridículo.
Todos contra a reeleição? Que estranho!
Em recente encontro no exterior, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, deixou claro que será retomada a discussão do fim da reeleição. No ano de 2022, o senador Jorge Kajuru protocolizou a PEC 12/2022 (Fim da Reeleição), que se encontra à espera de tramitação. A proposta parece tentadora e moralizadora. Como tudo que é aparentemente moralizador — e pode não passar de moralismo de baixa escala — e tudo que é tentador, podemos ter apenas uma arapuca embalada em papel dourado.
Pessimamente redigida, a PEC 12 cria um monstrengo jurídico, via mandato de cinco anos. E não explica como ficarão as eleições intercaladas. Mais uma jabuticaba jurídica. A PEC pretende alterar a Constituição para determinar a inelegibilidade para o mesmo cargo dos chefes do Poder Executivo no período subsequente. E pretende definir o mandato de presidente da república, governadores e prefeitos em cinco anos. Como diz o ditado popular: “o golpe tá aí, cai quem quer!”
Mais estranho: não discutem a limitação de mandatos!
Deveríamos aprender com os americanos. Lá a Constituição não tinha limites para as reeleições, consecutivas ou alternadas. Porém, depois que Roosevelt partiu para o quarto mandato, começaram a imaginar se não seria salutar uma restrição.
O presidente Roosevelt assume o país na quebra da Bolsa de 1929. Conduziu seu “New Deal”, que, não isento de críticas, levou os EUA à recuperação econômica. Reeleito seguidamente, conduziu o país durante a Segunda Guerra (seus terceiro e quarto mandatos pegaram esse terrível período). A despeito de ótimos mandatos, a limitação seria necessária. Roosevelt falece no cargo, antes do fim da guerra, mas já consciente da vitória aliada.
Sobrevém, então, em 1947, a 22ª Emenda que veda a qualquer americano exercer um terceiro mandato como presidente da república:
Seção 1: Nenhuma pessoa será eleita para o cargo de Presidente mais de duas vezes, e nenhuma pessoa que ocupou o cargo de presidente, ou atuou como presidente, por mais de dois anos de um mandato para o qual outra pessoa foi eleita presidente será eleita ao cargo de presidente mais de uma vez. Mas este artigo não se aplicará a qualquer pessoa que ocupe o cargo de presidente quando este artigo foi proposto pelo Congresso e não impedirá que qualquer pessoa que ocupe o cargo de presidente ou aja como presidente durante o período em que este artigo se torna operacional de ocupar o cargo de presidente ou atuar como presidente durante o restante de tal mandato. [tradução livre]
Os Estudos Constitucionais apontam a razão para a limitação da quantidade de mandatos, particularmente para presidentes da república:
Uma justificativa importante para a inclusão de limites de mandato, provavelmente na mente dos constituintes dos anos 1990, quando a democratização genuína parecia ao alcance, é que eles [limites contra vários mandatos] podem salvaguardar o sistema constitucional democrático. O medo é que, quando uma constituição permite que um presidente permaneça no poder por muito tempo, ele seja capaz de acumular poder e prestígio de forma a minar a ordem constitucional. Líderes que permanecem no poder por muito tempo passarão a ter influência indevida sobre outros componentes fiscalizadores do governo. Um presidente de longo prazo, por exemplo, terá a oportunidade de nomear subordinados leais para os chefes dos principais órgãos e tribunais. [tradução livre]
Um presidente indica ministros de tribunais supremos, além de outros magistrados e outros servidores públicos, seja com mandato vitalício (no Brasil, seria o caso dos Tribunais de Contas, por exemplo) ou temporário (no Brasil, os mandatos de Diretor do Banco Central).
O problema não é só a reeleição, mas, também, a sucessão de ocupação de poderes, num cago que interfere até mesmo nos demais poderes. Por isso, nossa veia autoritária não consegue fazer com que vejamos que nosso problema não é uma reeleição sucessiva, mas, sim, a ausência de limites para ocupar determinados cargos mais de duas vezes (seguidas ou alternadas).
A PEC da Reeleição é inócua. Quando algo parece agradar direita e esquerda, desconfie. Pode não passar de um freio de arrumação para uma carga hoje enjambrada. Mas a carga pesada e mal amarrada continuará a mesma coisa nefasta! Por isso é uma afronta aos interesses dos eleitores.
A limitação de mandatos no Legislativo
O Brasil deveria estar discutindo não o fim da reeleição, mas a imposição de quantidade máxima de mandatos. Citamos acima o exemplo da Constituição Americana, que proíbe, desde 1947 (22ª Emenda), a qualquer pessoa, de forma seguida ou alternada, exercer a Presidência da República por mais de dois mandatos. Permite-se a reeleição, mas veda-se o terceiro mandato, ainda que não seguido.
Outra questão que a PEC não trata, maliciosamente, seria a limitação de mandatos ou a vedação de reeleição para o Poder Legislativo. Limitar o número de mandatos ou a reeleição para o Senado, ou para deputado federal e estadual, ou vereador. Isso nem se cogita.
A European Commission for Democracy Through Law (Venice Commission), na Parte 2 do Report On Term-Limits (íntegra aqui), observou que, mesmo em menor escala que as limitações para mandatos do Poder Executivo, os limites de eleição ou reeleição para o Poder Legislativo não são desconhecidos no Direito Comparado.
Limitações de mandatos parlamentares ou existem ou já existiram, como os exemplos que o Relatório da Comissão de Veneza traz:
- Bolívia (dois mandatos consecutivos);
- Costa Rica (sem mandato consecutivo);
- Equador (dois mandatos consecutivos);
- Venezuela (dois mandatos consecutivos);
- Em 2014, o parlamento do México emendou a constituição, excluindo o limite de reeleição legislativa para deputados federais e senadores. O que indica que, até então, naquele país, havia limitação legislativa;
- No Peru, em 2018, uma emenda constitucional recriou o bicameralismo, e outra, em seguida, estabeleceu a vedação de reeleição legislativa para mandatos consecutivos. Submetidas a um referendo popular, a primeira emenda foi rejeitada, e a segunda foi aprovada;
- No nível subnacional, há limitação de mandatos na Coreia do Sul e nas Filipinas;
- Nos Estados Unidos, a limitação de mandatos existe no nível estadual, com aproximadamente 15 estados vedando a reeleição legislativa (de alguma forma) para o legislativo estadual.
Um relatório publicado pela Federalist Society revela que, de acordo com uma pesquisa do Instituto Gallup em 2013 e de Rasmussen em 2016, cerca de 75% dos eleitores americanos apoiam limites de mandato no Congresso. Embora o tempo médio de serviço possa ser semelhante ao de um presidente de dois mandatos, há muitos parlamentares com 45 anos no cargo. É preciso referir: o texto da Fed.Soc. traz algumas oposições ao limite de mandatos para parlamentares. Não traz, entretanto, nenhum comentário, por exemplo, à vedação de reeleição consecutiva a partir de um determinado número de reeleições: p.ex. vedar um terceiro mandato consecutivo na Câmara dos Deputados ou a reeleição consecutiva para o Senado.
A PEC “da reeleição” não trata do espinhoso tema da limitação de número de mandatos para o mesmo cargo no legislativo ou da vedação de reeleição simultânea para o mesmo cargo.
Vejamos como exemplo a proposta do senador americano Ted Cruz:
‘‘SEÇÃO 1. Nenhuma pessoa que tenha servido 3 mandatos como Representante [Deputado Federal] será elegível para eleição para a Câmara dos Representantes [Deputados]. Para os fins desta seção, a eleição de uma pessoa para preencher uma vaga na Câmara dos Representantes [Deputados] será incluída como 1 mandato na determinação do número de mandatos que tal pessoa serviu como Representante se a pessoa preencher a vaga por mais de 1 ano.
‘‘SEÇÃO 2. Nenhuma pessoa que tenha cumprido 2 mandatos como senador será elegível para eleição ou nomeação para o Senado. Para os fins desta seção, a eleição ou nomeação de uma pessoa para preencher uma vaga no Senado será incluída como 1 mandato na determinação do número de mandatos que tal pessoa serviu como senador, se a pessoa preencher a vaga por mais de 3 anos.
‘‘SEÇÃO 3. Nenhum mandato iniciado antes da data da ratificação deste artigo será levado em consideração na determinação da elegibilidade para eleição ou nomeação nos termos deste artigo.’’
Igualar as restrições do presidente para um prefeito?
Por fim, a PEC comete o erro crasso – que aliás é tradição brasileira – de igualar o limite de mandatos do presidente da República, dos governadores e dos prefeitos. O poder individual de um presidente é infinitamente maior que do prefeito ou do governador. E o poder de um governador é muito maior que de um prefeito:
- O presidente se perpetua no poder, por exemplo, com os cargos que nomeia: ministros do STF, do STJ, do TST e do Tribunal de Contas, ou as centenas de desembargadores federais, por exemplo. Somem-se os casos de mandatos temporários, mas que avançam sobre a gestão seguinte, como é o caso da presidência do Banco Central.
- O governador, por sua vez, nomeia desembargadores e conselheiros do Tribunal de Contas.
- O prefeito não nomeia nenhum cargo desses calibres.
Logo, vedar reeleição à presidência não precisa, necessariamente afetar os governadores e muito menos ser replicado aos prefeitos.
Essas observações têm por objetivo demonstrar como o discurso “anti-reeleição” pode passar de uma cortina de fumaça. O importante (limitar o número de mandatos) não se acha sequer cogitado. Logo, cabe ao eleitor exigir de seus constituintes uma posição crítica a respeito dessa medida que se pretende.
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