por Guilherme Lacerda* e Tânia Mara C. Villela**
A Lei 14.784/2023, promulgada pelo presidente do Congresso Nacional no final de 2023, após o veto total aposto pelo chefe do Poder Executivo, é uma das alterações mais impróprias inseridas em nossa legislação tributária. Ela prorroga até final de 2027 a desoneração do recolhimento das contribuições previdenciárias de 17 setores econômicos e de municípios com população inferior a 156.216 habitantes e que estejam submetidos ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS).
A legislação incluiu como beneficiários um grupo de municípios, reduzindo-lhes de 20% para 8% a parcela de contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos. Tal inovação atingiria 3.444 municípios, conjunto que representa 62% do total de cidades brasileiras, mas que agrega apenas 26% da população total. Exclui outras 1.933 cidades que estão na mesma faixa populacional, possuem 25% da população, mas não estão no RGPS, pois possuem seus Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) regido pela Lei 9.717/1998. Exclui também os 193 municípios com mais de 156.216 habitantes e que abrigam quase a metade da população do país, 49%. Ou seja, municípios que abrigam ¾ da população brasileira ficaram de fora da redução.
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Em boa hora o STF tomou a decisão de suspender os efeitos da referida lei por detectar a flagrante ausência do atendimento aos preceitos constitucionais.
A decisão judicial abriu a perspectiva de uma negociação para se construir uma alternativa que restabeleça os princípios da Medida Provisória 1.202/2023, que apresentava uma transição para ajustar posições, e não foi aceita. Os termos das interlocuções ainda não estão claros. Espera-se que também sejam contempladas alterações relativas à inclusão dos municípios. Estima-se que o impacto da decisão sobre o orçamento federal seja da ordem de R$ 22 bilhões. Ao mesmo tempo, avança no Senado uma proposta de lei dos quinquênios para o Judiciário que elevará as despesas correntes obrigatórias. Essa equação não fecha.
O Congresso Nacional não apontou a fonte de novos recursos que viriam a compensar a inclusão daqueles municípios no benefício da desoneração. Assim, tornou as alterações inconstitucionais e aumentou a impropriedade da legislação que vigia, a qual já carregava deficiências derivadas da ausência de comprovação de resultados obtidos em termos de geração ou preservação de empregos nos setores beneficiados. A medida, concebida inicialmente em um ambiente econômico totalmente adverso no final de 2011, vinha sendo prorrogada com impactos diretos no alcance do equilíbrio fiscal e previdenciário.
PublicidadeA desoneração aprofunda as distorções entre municípios de portes populacionais distintos e entre os regimes previdenciários municipais. As medidas aprovadas favoreceram cidades de menor porte populacional, ignorando que as maiores dificuldades fiscais se encontram em outros perfis municipais, como bem revelam os dados divulgados no anuário MultiCidades – Finanças dos Municípios do Brasil. Para exemplificar com dados de 2022, o maior indicador de receita corrente per capita, de R$ 5.519, pertence ao grupo de 3.862 municípios com até 20 mil habitantes, onde reside 15,8% da população do país. Já no grupo denominado G100, que reúne 11,3% da população em apenas 112 cidades, todas com mais de 80 mil habitantes e com altos índices de vulnerabilidade socioeconômica, o indicador não passa de R$ 2.989,00.
Além disso, as prefeituras que instituíram seus regimes próprios (RPPS) se verão em desvantagem em relação às que estão sendo desoneradas no regime geral (RGPS) e se sentirão estimuladas a realizar revisões inapropriadas em suas contribuições, aumentando assim os riscos atuariais futuros. Ademais, sendo a desoneração temporária, como ficará a condição fiscal das municipalidades beneficiadas ao término do prazo? Terão elas sanado suas dívidas previdenciárias, já que essa é uma das justificativas para a concessão do benefício, ou terão aproveitado a folga fiscal para assumirem outras despesas correntes das quais não poderão se desfazer quando tiverem que voltar a pagar pela alíquota cheia?
Há, ainda, um aspecto de improcedência tão flagrante que acaba ficando à margem. A lei da desoneração na sua origem, em 2011, foi feita pensando diretamente na geração de empregos. Nesse sentido, a inclusão de municípios não faz qualquer sentido, pois o ente público não pode expandir empregos por influência de tais estímulos.
Utilizar a justificativa da busca do equilíbrio fiscal para cidades endividadas com a Previdência é tampouco razoável. Há outros instrumentos para ajustes fiscais que não comprometem a Previdência e não são injustos para com os demais entes que primaram pelo equilíbrio. O fato é que a maior parte dos municípios se encontra em boas condições fiscais, conforme apontado pelo anuário Multi Cidades. Problemas financeiros que atingem alguns entes federados precisam ser enfrentados a partir de uma análise técnica específica e do desenho de políticas públicas adequadas.
A prorrogação da lei de desoneração não se apoiou em uma análise técnica referente aos setores econômicos envolvidos. Por que e como exatamente esses 17 setores econômicos foram escolhidos para receberem tal privilégio? Tal seleção não estaria causando desequilíbrios em relação a outras atividades econômicas, também intensivas em mão de obra e não incluídas? O resultado da renúncia fiscal valeu a pena para país? Nada disso sustentou o projeto de lei. Ele não olhou o todo e desprezou exigências de gestão orçamentária responsável já aprovadas pelo próprio Congresso Nacional.
O orçamento federal precisa ser preservado e, agora mais que nunca, precisa levar em conta a intensificação de desastres climáticos que atingem milhares de brasileiros, com uma recorrência assustadora de calamidades. A tragédia sem precedentes que atinge o Rio Grande do Sul exige uma revisão profunda de rota nas prioridades das políticas públicas. É neste contexto que a Lei 14.784/2023 necessita ser imediatamente revogada e receber em seu lugar uma proposta que não atinja gravemente a Previdência Social, a qual, por razões demográficas e tecnológicas, já dá sinais de não sustentar o delicado equilíbrio que se persegue.
* Guilherme Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, mestre em Economia pelo IPE-USP, professor (após) do Departamento de Economia da UFES. Foi Presidente da FUNCEF (2003-20010) e Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, publicado pela Editora LetraCapital. É associado da Veredas Inteligência Estratégica.
** Tânia Mara C. Villela, economista pela Unesp, pós-graduada pela FGV e sócia-diretora da Aequus Consultoria, empresa especializada em monitoramento de finanças públicas que elabora e edita anuários, entre eles o “MultiCidades – Finanças dos Municípios do Brasil”, realiza estudos como o sobre o “g100” e desenvolve e mantém o site de pesquisas “Compara Brasil”.
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