Fui pego de surpresa. Na hora não juntei alhos com bugalhos, e permaneci em stand by. Ocorre que Ferreira Gullar, poeta e intelectual que tanto admiro, era entrevistado para o Jornal Nacional por conta de uma “feira” ou encontro de escritores no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa. Aqui perto de casa, aqui mesmo no Rio de Janeiro, ex-Rio Babilônia. Gullar enaltecia as UPPs, e falava de uma mudança radical e de um convívio inimaginável entre o morro e o asfalto.
Enquanto o crime escapa ao controle das autoridades de São Paulo, o Rio comemora uma nova era. O poeta falava da “ocupação do bem”, de um novo paradigma. Tese confirmada pelo repórter que entrevistou moradores que flutuavam de contentamento no Morro dos Prazeres:
– Aqui nessa laje, antes das UPPs – dizia o repórter – o crime organizado controlava o acesso dos moradores e aterrorizava a comunidade.
Paraíso nos Prazeres. Duda Mendonça não teria feito melhor propaganda para o governo Sérgio Cabral. As Upps se transformaram numa espécie de grife de um Rio de Janeiro visto de outro ponto de vista, a partir das lajes. Onde todo mundo quer se dependurar. Super chique, unanimidade nacional e internacional: desde Tati Quebra-Barraco, passando por Ana Maria Machado e Lady Gaga até chegar em Glorinha Kalil.
Yes, nós temos churrasco na laje, por que não uma feira literária?
Assim nasceu a Flupp – Feira Literária da Policia Pacificadora, ou algo que o valha. Voltamos ao Jornal Nacional. Um casal de policiais é filmado folheando livros exatamente na mesma laje antes ocupada pela bandidagem, a “laje do bem”.
Nesse momento, despertei do sonho de algodão doce. Saí do estado de entorpecimento e, subitamente, me ocorreu uma questão: que livros eram aqueles folheados pelo casal de policiais? Decerto, a população ordeira e a imprensa (e os escritores pacificados) não saberiam responder … ou talvez respondessem algo do tipo “Heil!, UPPs”.
Pois eu aqui, que sou apenas um subversivo que gosta de mandar flores, aposto que os policiais não folheavam o singelo “Soneto do olho do cu”, uma peça escrita a quatro mãos por Verlaine e Rimbaud há mais de cem anos. No ambiente bovino e de confraternização imposto pelas UPPs, nada de Genet, sem chance pra Villon, Sade.
Eu gostaria que meus colegas escritores me respondessem: o que literatura tem a ver com pacificação? Na fase zen em que o Bope se encontra seria mais conveniente organizar um festival de origami, de Tai-Chi-Chuan, de florais de bach. Qualquer coisa do tipo, menos literatura. Aí a moradora do Morro dos Prazeres diz ao repórter que jamais havia comprado livros, e que aproveitara a oportunidade para presentear a família, livros à mancheia.
Teria ela comprado os livros de Reinaldo Arenas para presentear o genro homofóbico? Aquela senhora que disse que jamais havia comprado livros… teria tido a opção de conhecer a obra do cubano – odiado pela ditadura de Fidel – em detrimento dos Ágapes e agapinhos do Padre Marcelo? Duvido. Pra completar o conto de fadas, irrompe coronél Suassuna dizendo que o Lula, coitado, não sabia de nada.
O departamento de comunicação e intendência da Polícia Militar do Rio de Janeiro consideraria a hipótese de discutir a obra de Pasolini num encontro desses?
Os professores, arte/educadores, sociólogos, celebridades, capoeiras, MV (mensageiro da verdade?) Bill… e os escritores presentes estariam celebrando a ocupação pacífica de um território antes ocupado pelo crime … ou estariam acompanhando o cortejo fúnebre de uma diaba mequetrefe chamada subversão?
A ordem, a disciplina e a hierarquia que ocupa o Morro dos Prazeres segue a mesma lógica da ordem, da disciplina e da hierarquia que fuzilou Garcia Lorca com um tiro na nuca. A ordem, a disciplina e a hierarquia que mandou Artaud pro hospício é a mesma que ocupa o Morro dos Prazeres e o complexo do Alemão também.
Festival da ordem, da pacificação e do progresso? Voltamos ao positivismo, dra. Heloísa Buarque? E os caras têm a cara de pau de homenagear Lima Barreto. Deviam homenagear Plinio Salgado, porra.
Gullar! Você que traduziu “O suicida da sociedade”, obra prima de Artaud que desmente a loucura oficial atribuída a Van Gogh, logo você foi cair numa arapuca dessas? A ordem, a disciplina e a hierarquia que encarcerou Graciliano Ramos é a mesma que ocupa a Rocinha. Ordem, disciplina e hierarquia significam o contrário de arte. Significam controle. Ocupação. Polícia. A mão pesada do Estado.
Ah, não venham me dizer que sou contra a retomada dos morros. Contra a pacificação. Claro que não! Uma coisa é festejar a expulsão dos bandidos, a volta da tranquilidade na vidinha da dona de casa que não precisa de Thomas Bernhardt nem de Dostoiévski para ser feliz. Quem seria louco de discordar? Outra coisa bem diferente é dizer que, agora, a função da PM é fazer a ponte entre a comunidade e a literatura, isso não! Eles lá nos quartéis, e eu cá – dinamitando as pontes, atirando nos bandidos e nos mocinhos, zoando a ordem unida e as boas intenções – é o mínimo que posso fazer como escritor.
O problema é que os desdobramentos desse controle/ocupação podem ir – aliás já foram – longe demais. Só faltava um festival literário da Polícia Militar. Muito sórdido emprestar a credibilidade de autores como Suassuna e Ferreira Gullar para festejar o cabresto. E essa sordidez vem acompanhada de uma demagogia ímpar. A mesma demagogia que teve de mudar de máscara em Tropa de Elite 2 (Seja fascista, Padilha! ). Não por acaso, Luis Eduardo Soares é um dos idealizadores da Flupp. Brasilzinho freixo, digo, frouxo. Não por acaso, a literatura vai sumindo por aqui, apagada pela paisagem deslumbrante e agora pelas escopetas do bem.
Fico até constrangido em repetir o óbvio. Mas vamos lá. Arte não combina com polícia. A lógica é outra. Polícia é sinônimo de ordem e jugo. Ser subjugado num regime totalitário é a mesma coisa que ser subjugado em qualquer outro regime. Quando isso acontece numa democracia, onde supostamente temos liberdade de pensamento e de manifestação, isto é, liberdade de subverter a ordem, a disciplina e a hierarquia, quando esse convívio é sacramentado como foi nesse Festival de Literatura da PM carioca, bem, podem ter certeza que alguma coisa está muito errada. Arte pacífica é uma contradição em si. Polícia para quem precisa de polícia. Inclusão pela pacificação significa rendição, “teje preso”.
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