Renata Villela*
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) trouxe para a sociedade, o debate sobre o registro civil. Muito mais do que um documento, o registro civil é o fio condutor de uma entrevista densa e esclarecedora com Cláudio Machado, especialista em Gestão da Identidade do Cidadão, consultor independente e pesquisador associado do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade).Nela, o entrevistado explica desde a função do registro civil, até os responsáveis pela sua efetivação, passando pelos ganhos que ele promove para toda a sociedade.
Salve Seus Dados: O ENEM deste ano apontou a invisibilidade dos que não têm um registro civil. Porém, o sistema de
registro civil também é invisível para a maior parte da população. Como ele funciona?
Cláudio Machado: O registro civil no Brasil é uma responsabilidade do poder Judiciário, é um serviço extrajudicial exercido de forma delegada, ou seja, os responsáveis por sua execução são profissionais concursados.
Desde o nascimento de uma pessoa, já no sistema de saúde, é feita uma coleta de dados sobre ela, que resulta num documento chamado de Declaração de Nascido Vivo (DNV). Porém, o reconhecimento legal de fato ocorre com o registro civil e a emissão da certidão de nascimento.
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A partir daí, todos os atos que alteram o status civil do cidadão devem ser declarados no registro civil. Esse é o caso do casamento, do divórcio, de uma interdição, entre outros atos e, por fim, o óbito.
SSD: Quais foram os principais ganhos com a implantação do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (SIRC) e o que ainda é preciso ser feito para garantir o direito à identidade e o acesso pleno aos serviços públicos?
Cláudio Machado: O SIRC foi criado pelo governo federal dentro do contexto da política para a erradicação do sub-registro e acesso à documentação básica por volta do ano 2007. Ele é um instrumento muito importante para a gestão das políticas públicas, na medida em que consolida os dados coletados pelos cartórios de registro civil. Dessa forma, os cadastros administrativos que todas as políticas públicas necessitam podem vir a ser alimentados com as informações de alteração de status civil dos cidadãos que vêm dos cartórios. Seria impossível que os cartórios enviassem essas informações para cada um dos órgãos públicos, por isso, o governo federal padronizou o recebimento dessas informações por meio do SIRC.
Além da questão da padronização do recebimento dos dados, a Política de Erradicação do sub-registro também foi fundamental na padronização do modelo das certidões. Antes, o Brasil não tinha um modelo padronizado de certidões. O que era, além de inconveniente, um grande fator de exclusão social e elitismo. Por exemplo, às vezes, um mesmo cartório emitia uma certidão em um papel mais barato para uma pessoa que fazia o ato gratuito e oferecia uma certidão em um papel com mais qualidade para pessoas que se dispunham a pagar. Com a padronização, todas as certidões de todos os brasileiros passaram a ser iguais, desde as pessoas mais simples, nascidas em comunidades pobres, até os que nasceram de pais de classe alta. Esse é um importante fator de respeito ao princípio constitucional da igualdade.
SSD: Qual é a importância do registro civil para o Estado? E para o cidadão?
Cláudio Machado: Essa questão no Enemfoi tão interessante, pois ela deu visibilidade ao problema de ainda existirem no Brasil milhões de pessoas que não têm acesso ao direito fundamental de ser reconhecido como cidadão perante o Estado. O registro civil para o cidadão representa a sua inclusão no mundo dos direitos.
Para o Estado, o registro civil também é fundamental, e é uma responsabilidade dele garantir que isso aconteça. Além do poder Judiciário, que é responsável pelo registro civil, os poderes Executivo e Legislativo, dentro de suas competências, devem atuar para que o direito de todo cidadão a ter outros direitos seja respeitado.
Além disso, para o Estado é fundamental ter acesso às informações do cidadão para a gestão de políticas públicas e a prestação dos serviços. Com as informações corretas, o Estado minimiza as fraudes, mas também tem a possibilidade de prestar um bom serviço, realizando uma política pública adequada.
SSD: Como funciona a mudança do registro civil no caso de pessoas que mudam de nome ao longo da vida (transexuais, pessoas casadas, pessoas que conseguiram na justiça o direito de mudar de nome)?
Cláudio Machado: Já era aceito na legislação, há muito tempo, a alteração do nome no registro de casamento. Mas, recentemente, uma regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permitiu que pessoas que não se identificam com o gênero que nasceram podem solicitar diretamente no cartório a alteração de sua identificação de gênero, ou identidade de gênero no registro civil. Isso permite que essas pessoas possam alterar também seu gênero e nome nos outros serviços de identificação civil, cadastros e etc. Cabe ressaltar que esse procedimento é feito diretamente no cartório de registro civil, e que não há exigência de decisão judicial e laudo médico, que eram coisas que existiam antes e em muitos países ainda são exigidas.
SSD: Qual a importância do sistema de registro civil ser público?
Cláudio Machado: Em todo o mundo o sistema de registro civil é público. No Brasil, pelo fato dele ser delegado, algumas pessoas dizem que ele seja privado. Isso é um grande equívoco, pois a delegação não transfere a titularidade ao profissional que executa o serviço, ela continua sendo do Poder Judiciário que tem a responsabilidade última pelo correto cumprimento das leis e normas que balizam o funcionamento do registro civil. Outra questão importante é a da responsabilidade pelos dados do registro civil. O Poder Judiciário, por meio dos cartórios, é o responsável pela custódia dos dados do registo civil. O Governo Federal, na medida em que é responsável pelo SIRC, também deve zelar pela proteção dos dados e evitar que eles sejam utilizados para finalidades diferentes que justificaram a criação do SIRC.
Certamente, seria ilegal que os dados do registro civil fossem apropriados por plataformas digitais privadas que explorassem os dados do registro civil para obter lucro sem expresso consentimento do cidadão que é o titular dos dados. Mesmo as plataformas públicas existentes atualmente devem ser utilizadas para a gestão de políticas públicas, no caso do SIRC, e simplificar o acesso ao registro civil, no caso da CRC, respeitando o direito à gratuidade pelos hipossuficientes. Infelizmente, o CNJ tem falhado nesse sentido. A plataforma regulamentada pelo CNJ e operacionalizada pela associação de cartórios não prevê a gratuidade. Não pode haver diferenciação e privilégio na prestação de um serviço tão importante para a cidadania.
É fundamental que os dados do registro civil sejam geridos por entidades públicas que promovam a garantia ao acesso aos serviços do registro civil de forma moderna e simplificada. O uso da tecnologia para promover o acesso à cidadania não pode ser tratado como uma “comodidade”. Nada disso, trata-se de um direito.
SSD: Em um tuíte recente, você chamou de elitista o art 13º do Estatuto da Advocacia, ao estabelecer que o documento profissional “constitui prova de identidade civil”, atentando contra a igualdade tal como definida no Art 5º da Constituição. Poderia comentar mais sobre isso?
Cláudio Machado: Não é só um problema do documento profissional do advogado. No Brasil, todas as associações de profissões regulamentadas podem expedir documentos para a comprovação do exercício regular da atividade, que também tem valor de identidade civil.
Não por acaso, o Brasil é conhecido como o país da “carteirada”. Afinal, por que existe a carteirada? Existe porque existem documentos em que a pessoa se sente mais importante do que um cidadão comum. Se todos fossem identificados apenas por um documento civil, esse tipo de coisa não teria lastro na nossa sociedade. Isso não acontece em nenhum outro país com democracia moderna. Eu procurei em todos os países da América do Sul, América do Norte, na Europa e não encontrei nenhum país em que essa situação ocorra.
Ao permitir isso, essa legislação que autoriza o uso dos documentos profissionais como identidade civil, fere o princípio constitucional da igualdade porque permite que pessoas comprovem a sua identidade civil de uma forma diferenciada.
Em Portugal, por exemplo, o documento de identidade civil é o cartão do cidadão, ele é igual para todo cidadão português. Se você é um advogado, você pode inserir no chip a informação de que você é advogado. Isso se chama certificado de atributo e prova que a pessoa pode exercer a atividade da advocacia. Mas é uma identificação oculta, que não permite que ninguém utilize o cartão do cidadão para tentar se diferenciar, ou mostrar um status maior.
Porém, acredito que o documento profissional é fundamental, e uma proteção aos profissionais para que possam comprovar oficialmente o exercício legal da profissão, tais como médicos, jornalistas, advogados, mas não como identidade civil.
Eu destaquei a advocacia porque acredito que os profissionais do direito deveriam ter consciência da importância do respeito à Constituição. A OAB é responsável não só por zelar pelo exercício legal da profissão de advogado, mas também tem um papel institucional de zelar pelo respeito à Constituição. Entendo que tem o dever moral e institucional de renunciar a essa aberração elitista que existe na nossa legislação.
O mínimo que a OAB deveria fazer, é propor que seu próprio documento de exercício profissional renunciasse a esse privilégio de poder ser utilizado como prova de identidade civil.
SSD: No livro ‘Invisíveis. Uma etnografia sobre os cidadãos sem documentos’ a autora Fernanda da Escóssia cita, dentre outros, a diversidade de sistemas e processos e a falta de integração entre os cartórios como uma das causas da exclusão documental. Qual o papel da Dataprev neste contexto?
Cláudio Machado: Essa é uma questão dos documentos e a garantia de acesso a direitos é complexa, porque estamos falando de um grande problema que temos no Brasil. Vemos na prática que não basta apenas o registro civil para que o cidadão tenha direitos plenos – embora ele seja importante -, mas é fundamental que ele tenha também acesso ao documento de identidade, da mesma forma, acesso aos cadastros administrativos do SUS, da Previdência, da Assistência Social.
A Dataprev, como empresa pública, tem um papel importante de ser um dos maiores operadoras de cadastros administrativos do governo federal, e foi pioneira na integração de cadastros administrativos com o CNIS. Sua responsabilidade é manter os dados dos cidadãos íntegros e seguros, garantir que eles não sejam utilizados com propósitos não previstos na legislação e que mantenha a capacidade de inovar em prestação de serviços e integração dos dados para que o governo possa ampliar o acesso da população às políticas públicas.
SSD: A falta de documentos é predominante nas classes sociais mais pobres, que esbarram ainda na chamada síndrome do balcão. Concorda que a transformação digital do Governo Federal deixa a desejar?
Cláudio Machado: Sinceramente não concordo, o que está sendo feito pelo governo federal em relação à transformação digital é algo necessário. Não chega a toda a população, é verdade, porque há um número grande de pessoas ainda que são excluídas do acesso à tecnologia e mesmo do acesso aos documentos pessoais.
Apesar disso, o país precisa seguir inovando na prestação de serviços públicos. A limitação que vejo é que não basta apenas aprimorar as formas de autenticação do cidadão para acesso a políticas públicas. É preciso de fato estruturar uma identidade digital fundamentada na identidade civil e avançar na interoperabilidade dos cadastros administrativos, que é um tema que se avançou muito pouco na prática nos últimos anos.
Outra coisa importante é que o acesso ao serviço digital nunca vai chegar a todos os cidadãos. No mundo todo, o conceito atual é de o governo ter multicanais de atendimento ao cidadão: seja por telefone, seja no balcão, seja por meio digital. O que a gente tem que ter é tecnologia e processos bem trabalhados para que qualquer cidadão tenha acesso aos seus direitos, em qualquer um desses canais.
Toda política pública tem objetivos, mas ninguém consegue resolver tudo. É preciso reconhecer os avanços, mas também entender que estes os avanços não são suficientes, é preciso ir além deles.
*Renata Vilela, especial para a campanha Salve Seus Dados
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