Como cidadão, sempre que o tempo me permite, procuro debater a questão da comercialização de armas no Brasil. Não que eu esteja em dúvida sobre o meu pensar, mesmo porque já fiz publicar vários artigos sobre o tema. Neles, defendo, sempre, a permanência de uma campanha pelo desarmamento. Acho que a questão sempre merece reflexão aprofundada, mesmo porque a vida é um assunto exageradamente sério. Tão sério que várias pessoas que respeito e admiro – incluindo neste rol aquelas que nunca terão armas de fogo – estão convencidas de que as armas são fundamentais para a proteção dos cidadãos do bem e à paz.
O conceito de proteção, como se sabe, foi vitorioso quando do inédito referendum que agitou o país. Poder-se-ia dizer, a partir dele, que o soberano povo já se manifestou e que, portanto, nada mais se pode fazer no campo legislativo. A permanência da violência demonstra, no entanto, que a consulta não encerrou a questão ou fez prevalecer a paz e a vida. Exatamente por isso o tema da proibição da comercialização das armas voltou à pauta por provocação da realidade e, posteriormente, por ação concreta do presidente do Senado. Abriu-se, assim, a temporada para a manifestação da cidadania.
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Registro que, quando do referendum, estava convencido de que as armas de fogo não cumpriam a prometida missão de proteção. Ao contrário, eram elas, na época, responsáveis pelo aumento da própria violência, vitimando em dois anos mais brasileiros do que os soldados estadunidenses na guerra do Vietnã. Também estava convencido da veracidade dos seguintes dados: a) os que usam armas de fogo têm mais chance de serem assassinados; b) um terço das despesas e emergências hospitalares são motivadas pelo uso desses instrumentos letais; c) são responsáveis, somente na cidade do Rio, por 65% das mortes de jovens do sexo masculino, superando os acidentes de carro, as doenças e causas naturais; d) as armas de fogo trazem violência para a família, pois aumentam o risco de homicídio inter-familiar, os acidentes e os suicídios, sendo que quase metade dos homicídios é cometida por pessoas sem histórico criminal; e) são as legalizadas que abastecem, quando roubadas ou perdidas, um terço do potencial bélico dos criminosos brasileiros.
E o que mudou desde o referendum? Nada! Nem mesmo os argumentos foram modificados. O que continua a impressionar na discussão é que a questão central do debate permanece inalterada. Repete-se não existir contradição entre a guerra e a paz. Ratifica-se a velha máxima de que a paz somente pode ser obtida quando nos preparamos para a guerra. Pouco importa o paradoxo da afirmação de que a vida necessita da arma de fogo para poder sobreviver, mesmo sendo ela uma máquina construída exclusivamente para matar.
Mas não foi esse conceito quem alimentou todas as guerras espalhadas pelo mundo, desde as invasões egípcias, passando pelas grandes guerras mundiais e fazendo quente a chamada Guerra Fria? Não foi essa a idéia agasalhada pelos ditadores africanos quando compraram armamentos para matar o seu povo, a do General Bush quando invadiu o Iraque, ou a de Hitler, Mussolini, Napoleão, Átila, Stalin e outros imperialistas quando desenvolverem seus intuitos bélicos? Não é a história quem demonstra que as bombas atômicas, os canhões, as metralhadoras, os cruzadores e os caças não fizeram a paz, apenas servindo para armar aos espíritos bélicos dos governantes, dos terroristas e dos mercenários? Não são essas mesmas armas legais que estão nas mãos dos chamados adversários e cidadãos do mal, inclusive as destrutivas armas nucleares? Não é exatamente o grande número de armas que faz o mundo inseguro, violento e sem qualquer perspectiva de paz? Não é a catástrofe nuclear do Japão uma das maiores ameaças ao planeta?
Proibir o comércio de armas é, portanto, mais do que uma análise de estatística ou uma questão político-partidária. É acima de tudo, uma compreensão do mundo, da paz e da própria vida. É exatamente a possibilidade de mudar uma concepção que claramente falhou. É enterrar definitivamente a idéia de que a arma de fogo é sinônimo de paz, proteção e esperança. É deixar claro que uma arma de fogo não pode ser encarada como um souvenir da morte ou uma medalhinha da vida. É contribuir para não dar lucro à riquíssima indústria que se alimenta da morte e da destruição da humanidade.
Acreditar que a paz somente pode ser conquistada com a força da paz é a novidade não ainda experimentada pela humanidade. Não apoiar aqueles que conservam o espírito bélico, ainda que tido como cidadão do bem, faz parte do rol do inalienável direito de sobreviver. Apostar no direito à vida contra o direito de matar é e sempre será a melhor pedida. Afinal, é sempre atual a reflexão de Albert Einstein, quando ensinou que o mundo não está ameaçado pelas más pessoas, mas sim por aqueles que permitem a maldade.