Roberto Luiz d’Avila *
As entidades médicas reconhecem a importância de estender atendimento de qualidade às populações historicamente esquecidas, que vivem nos pequenos municípios da Amazônia, do Nordeste e do Centro-Oeste. Também concorda que os moradores das periferias dos grandes centros – com indicadores sociais, econômicos e educacionais abaixo do desejável – precisam tanto de cuidados quanto aqueles que estão nos bairros nobres. O pomo da discórdia nesta questão é a forma como se quer resolver essa pendência.
Para o governo, a solução foi simplificada à presença de um médico num posto de saúde. As entidades de representação dos médicos estão convictas de que essa equação não funciona mais, evocando um período romântico onde o médico adentrava os rincões munidos apenas de um estetoscópio. Os tempos são outros e com eles igualmente transformaram-se as realidades.
Os avanços científicos e tecnológicos, que geraram novas possibilidades de fazer diagnósticos e tratamentos, exigem uma nova configuração. Essa necessidade se materializa no dia-a-dia das emergências e dos ambulatórios e, no cenário atual, na prática nefasta da “ambulacioterapia”, que obriga milhões a serem deslocados em busca de melhores cuidados quilômetros distantes de sua casa.
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A recusa do governo em assumir esse quadro e se comprometer com sua mudança fica ainda mais grave quando apresenta a proposta de importar médicos estrangeiros sem revalidação de títulos para ocupar os espaços vazios nos rincões do país. Ao trilhar esse caminho, o governo fere as normas legais, desvaloriza os profissionais nacionais e, sobretudo, coloca a vida de milhões de brasileiros em situação de risco.
Em artigos e comentários, ouve-se o argumento de que onde há carência total de profissionais, “alguém” com um mínimo de conhecimento faz a diferença. O problema é que esse alguém chega imbuído da responsabilidade de fazer saúde e de um grande poder de influência sobre as comunidades. Na tentativa de fazer a coisa – até porque ninguém pensaria o contrário – pode-se diagnosticar errado, prescrever de forma inadequada, retardar tratamentos, induzir a práticas errôneas e, em última análise, ceifar vidas ou arruinar para sempre a saúde dos seus “pacientes”.
PublicidadeO mínimo que se espera é que estes candidatos ao exercício da medicina em território brasileiro passem por exames de revalidação de títulos para medir com régua criteriosa o seu nível de conhecimento e sua capacidade de operação. Já temos instrumento para isso: o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), criado pelo próprio governo, em 2010, tem demonstrado ser eficiente ao fazer essa triagem.
Há reclamações de que é difícil demais. Contesto tais afirmações. O exame é preparado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), ligado ao Ministério da Educação, de forma autônoma e com maior idoneidade possível. Ao contrário do que se fala, os Conselhos de Medicina não tomam parte desse processo, apenas o acompanham.
A tarefa de preparar as provas e aplica-las cabe a professores experientes, oriundos das maiores universidades brasileiras, comprometidos com a excelência e com a boa prática médica, assim como com a justiça em todos os seus atos, que preparam provas com base nos conteúdos dos currículos acadêmicos das principais escolas do país.
Se o candidato não passa, é porque não está preparado. Se não está preparado, o reprovado deve ter a chance de atender, de clinicar, especialmente entre os mais carentes, com menor poder de critica? Ou o melhor caminho não seria se preparar para um outro exame, procurando suprir suas deficiências em cursos e nos livros? A que custo devemos deixar um “caolho” transitar numa terra de cegos e a quem cabe a responsabilidade pelos erros depois de feitos?
Os Conselhos de Medicina não são contra a vinda dos médicos estrangeiros. Que venham seis mil ou mais. No entanto, que todos sejam aprovados em exames justos, como o Revalida, sem concessões. É assim que acontece na Inglaterra, nos Estados Unidos, em Portugal, no Canadá. Isso me faz ter ainda mais convicção de que não devemos seguir outras fórmulas, ignorando a cautela quem encontrou o caminho do desenvolvimento econômico e social.
Certamente, a crise assistencial é urgente e, portanto, exige medidas extremas e igualmente urgentes. As entidades concordam com isso e estão dispostas a negociar termos para que o trabalho do médico se realize nestes locais, mas tendo como pressuposto a transitoriedade dessas alternativas. Há poucos dias, o Conselho Federal de Medicina (CFM) entregou ao Palácio do Planalto e ao Ministério da Saúde um plano de ação dividido em três etapas e em dois tempos, com o qual podemos vislumbrar soluções para os impasses identificados.
A primeira proposta – de efeito imediato, de curto prazo – tem como foco oferecer oportunidade e estímulo aos médicos formados no Brasil para ocupação dos postos de trabalho existentes nas áreas de difícil provimento, segundo critérios a serem estabelecidos pelo governo federal e conjuntamente com as entidades médicas nacionais, dentro da retomada do diálogo necessário. Esse seria o âmago do Programa Nacional de Interiorização da Medicina, que supriria a carência, especialmente, dos municípios sem médicos ou com populações de até 50 mil habitantes.
Muito se fala da resistência do médico em se instalar nos vazios assistenciais. Não é verdade. Se houver oportunidades sólidas, com todo o aparato necessário para que o trabalho se realize, acredito que milhares se apresentarão. Além do mais, as lacunas existentes não demandam apenas médicos. Nestes locais, faltam enfermeiros, dentistas, psicólogos, engenheiros, professores, arquitetos.
São municípios que exigem a presença forte do Estado para que os direitos cidadãos se concretizem. Espera-se que a implementação desse programa possa ser o início do processo de renovação capaz de fazer os egressos das escolas de medicina do país aceitarem o chamado do interior. Contudo, isso exige que os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) sejam capazes de oferecer-lhes, também, o instrumental para ser médico em sua essência.
Diagnosticar e tratar será possível com a garantia: de monitoria (presencial e à distância) vinculada a programas de extensão de escolas públicas de medicina; de condições adequadas nas localidades indicadas, por meio da instalação de unidades de atendimento e laboratórios; de acesso a insumos e equipamentos de diagnóstico e terapia; apoio de equipe multiprofissional; e de acesso de rede de referência e contrareferência (leitos, exames e outros procedimentos) para encaminhamento de casos diagnosticados.
Além disso, o Programa de Interiorização da Medicina seria um aceno de valorização para o profissional formado no país com o estabelecimento de critérios contratuais que dariam ao médico a perspectiva de trabalhar sem sobressaltos, situação comum com o estado constante de precarização em que vivem a maioria dos profissionais do interior. A oferta de uma remuneração com valor atualizado equivalente ao piso nacional proposto pela Federação Nacional dos Médicos (Fenam) – pagos pelo Ministério da Saúde – e do direito à licença-maternidade e auxílio-doença, férias e aviso prévio de desligamento de 30 dias seriam grandes atrativos.
O segundo ponto da proposta encaminhada pelo CFM – com efeito também de curto prazo – se relaciona à sua maior crítica: a entidade aceita a “importação” de médicos estrangeiros e de brasileiros com diplomas obtidos no exterior, desde que aprovados no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida) – elaborado pelo Ministério da Educação, na sua forma e seu conteúdo atuais. A manutenção dessa condição está ancorada na certeza de que ela aumenta a segurança dos pacientes sob os cuidados desses profissionais.
Ora, o Brasil é um país de imigrantes, e o CFM jamais seria contra a vinda de médicos estrangeiros, como nunca foi e não é. No entanto, não pode abrir de suas prerrogativas de exigir e defender a boa prática médica no país. Para tanto, os “estrangeiros” devem provar seus conhecimentos em provas teóricas e práticas nos moldes do atual Revalida, ou seja, sem qualquer flexibilização ou diminuição da nota para aprovação (atualmente fixada em 5).
Além disso, há outros critérios, como o domínio da língua portuguesa (conforme disposição legal vigente), e sendo esse ponto absolutamente necessário para a adequada relação médico-paciente, evitando-se riscos de erros de diagnósticos e de tratamento. Na Inglaterra, um dos países onde existe um número significativo de médicos estrangeiros em atividade, todos passaram por este crivo. Foram submetidos a exames de conhecimentos médicos e além disso tiveram sua fluência em inglês testada.
Quando as entidades médicas cobram o cumprimento dessas exigências não o fazem para criar dificuldades, mas para defender a qualidade da assistência oferecida à população brasileira. Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina entende que os médicos estão mal distribuídos pelo país. Para isso, mais que importar ou criar soluções paliativas, o governo deve criar políticas públicas que estimulem a redistribuição dos médicos brasileiros, por meio de incentivos para a transferência dos grandes centros para o interior, com sua posterior fixação.
No entanto, muito mais importante do que interiorizar o médico é interiorizar a infraestrutura em saúde para atender a população. Isso, em síntese, significa interiorizar a assistência como um todo, o que expressa o real desejo da população. Certamente, essa aposta implica em maior investimento em saúde, com alocação de recursos na proporção necessária à demanda para bem assistir a população.
Contudo, são medidas que se apresentam como urgentes no atual momento vivenciado, quebrando-se o paradigma de um quadro de subfinanciamento da saúde e uma baixa participação do Estado no gasto sanitário na área. Essa realidade nos coloca na contramão de nações desenvolvidas, que contam com modelos assistenciais semelhantes ao brasileiro.
Na Inglaterra, a participação do Estado no gasto nacional em saúde chega a 84%. Na Suécia, França, Alemanha e Espanha, oscila de 74% a 81%. Na Argentina, este percentual é de 66%. No Brasil, de acordo com dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), a participação do Estado é de apenas 47%. Para o CFM, este percentual deve crescer, como resultado de um debate nacional com a participação do governo, do Congresso, das entidades médicas e de profissionais da saúde e setores da sociedade civil organizada.
Essa discussão está diretamente vinculada à terceira proposta encaminhada pelo CFM às autoridades. A ideia de construção e implementação de uma carreira federal para médicos com entrada em vigor – no máximo – em 36 meses de funcionamento das ações previstas anteriormente tem a característica importante de ser uma resposta definitiva para a fixação dos profissionais nestas áreas de difícil provimento.
Um ponto importante é que na acepção de que não basta interiorizar o médico, mas um processo assistencial, o CFM propõe que sejam criadas também carreiras de Estado para cirurgiões-dentistas, enfermeiros, farmacêuticos e bioquímicos que atuem no de SUS. Todos trabalhariam em molde semelhante às carreiras já existentes para os cargos de juiz e promotor no âmbito do Poder Judiciário.
Onde há condições de trabalho existem médicos, onde não há essas condições, não existem médicos. No entanto, onde não existem médicos também não existem enfermeiros, dentistas, farmacêuticos, bioquímicos, engenheiros, arquitetos, psicólogos, advogados ou qualquer outro profissional liberal. Portanto, não se pode afirmar que o médico não quer ir para o interior.
O CFM entende que o desinteresse dos médicos, até o momento, em ocupar postos nas áreas de difícil provimento não pode ser entendido como falta de compromisso para com o país e os cidadãos. Esse quadro, em verdade, sinaliza que a recusa decorre da constatação de que nessas localidades inexistem condições para o trabalho do médico de forma ampla e um quadro de precarização das relações de trabalho (falta de concurso público; vínculos precários; descumprimento de acordos; etc.).
Infelizmente para os profissionais e para a população, não existe infraestrutura de atendimento em saúde no local que permita a materialização da assistência com qualidade para a população. Faltam enfermeiros, técnicos de enfermagem e os outros profissionais de saúde, assim como hospitais ou postos de saúde, laboratórios, enfim, a infraestrutura necessária que permite a boa prática médica e o bom atendimento dos pacientes.
Ressaltamos mais uma vez nossa incompreensão da tese de que a simples alocação do médico em um determinado município tornará a população assistida. Para que este benefício seja oferecido com efetividade e eficácia, como já ressaltado, é necessário interiorizar o sistema de saúde, no qual o médico é um integrante importante, mas não suficiente para que os resultados ocorram.
Como temos ressaltado, os médicos brasileiros e os Conselhos de Medicina querem colaborar com esse processo de forma ativa e garanto todo o nosso empenho em atender às necessidades da população, cercando-a de profissionais brasileiros competentes, comprometidos, bem preparados e estimulados a cumprir sua missão de levar o bem estar e salvar vidas.
* Roberto Luiz d’Avila, 60 anos, cardiologista, é presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).
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