Estamos num período profícuo de notícias sobre médicos. Nos últimos dias, três fatos ganharam o noticiário nacional: 1) o Conselho Federal de Medicina divulgou o número de médicos e sua distribuição pelo Brasil; 2) a Justiça de Minas Gerais condenou médicos por comercializarem órgãos humanos; e 3) a Polícia Civil do Paraná investiga a causa das mortes de idosos num hospital de Curitiba. A médica responsável pela Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital foi acusada e presa por conta das mortes.
Cada notícia tem um caráter diferente e desta maneira deve ser interpretada, porém sobre cada uma delas cabe uma reflexão. A primeira, certo que numa interpretação rápida e rasteira, traz a preocupação, principalmente das autoridades federais, de formar o médico e distribuí-lo pelo país, para garantir um sistema público de saúde que atenda a todos, de acordo com a Constituição e a Lei Orgânica da Saúde, que criou o SUS.
A segunda notícia dá-nos conta de que quatro médicos foram condenados em janeiro passado, por um caso, podendo existir outros, de remoção e comercialização de órgãos como rins, fígado e córneas.
No caso, não se cumpriu a lei de transplantes. Ela estabelece que a morte encefálica deve ser constatada e registrada por dois médicos que não participem da equipe de remoção e transplante. Não foi o que ocorreu. O mesmo médico que não atendeu adequadamente o paciente foi o que declarou a morte encefálica.
Leia também
Abro um parêntesis, só para lembrar aos críticos da Câmara dos Deputados e aos deputados: a investigação da Polícia Federal e a posterior condenação dos médicos partiram dos resultados obtidos por uma Comissão Parlamentar de Investigação (CPI) de 2002. Fecho parêntesis.
Já vi, ouvi e li muitas notícias sobre a comercialização de órgãos humanos, mas não me lembro de ter visto alguém condenado por esse crime. É a primeira vez.
Como ser humano e, no caso, como médico, este tipo de crime me agride: como pode um médico deixar alguém morrer, quando não provocar a morte, para deste corpo tirar algum órgão e vender? Não foi isto que a faculdade nos ensinou, mas como vivemos num sistema capitalista, o sistema ensinou que o dinheiro vale mais que a vida.
A última notícia, a prisão da chefe da UTI do hospital de Curitiba, leva-nos a uma reflexão que vai além da qualidade da formação médica no sentido técnico. Leva-nos a uma reflexão sobre ética e filosofia. Muitos e muitas, ao ouvirem a notícia, demonstraram revolta e indignação, ambas compreensíveis. Para encarar essa relação no sentido filosófico e ético, no entanto, é necessária uma longa reflexão coletiva sobre a razão da vida e a qualidade da morte, ou seja, sobre como morrer com dignidade e com o menor sofrimento possível. Debate hoje limitado ou quase que impossível, pela ideologia da maioria das igrejas e religiões, que em muitos temas têm uma posição ainda da Idade Média.
O médico especialista em UTI, na maioria das vezes, sabe quando o quadro clínico do paciente é irreversível e nada mais resta a fazer além de interromper o tratamento. Não sei se foi esse o caso no hospital de Curitiba. As investigações irão dizer. Mas interromper o tratamento não significa interromper a vida. Neste momento é que entra o debate: quando teremos uma lei que nos permita morrer com dignidade e com pouca ou nenhuma dor?
São notícias profícuas no sentido de exigir uma rápida reflexão sobre o tema saúde/médico, a sociedade e o sistema em que vivemos. Esta reflexão não cabe somente aos médicos, mas a todos os cidadãos e todas as cidadãs. O que queremos dos médicos e o que esperamos destes profissionais? O que a sociedade espera de todo e qualquer profissional, independente da profissão no sistema capitalista? Apenas ganhar dinheiro, ou existe o capitalismo humanista? Ou o humanismo é coisa do individuo e não da coletividade? Por falar em humanismo, é humano dar uma boa morte ou permitir que alguém agonize solitariamente numa UTI?
A oportunidade para este debate esta nas mãos da sociedade e do Congresso Nacional, pois a mudança no Código Penal descriminaliza a ortotanásia (morte natural). Hoje ela é tipificada como homicídio. Pela proposta que tramita, não será crime quando o médico deixar de fazer o tratamento para manter a vida de pacientes em estágio irreversível, desde que constatado por dois outros profissionais e que haja consentimento do paciente ou de parentes ascendentes, descendentes, cônjuges, companheiros ou irmãos.