A pior face do capitalismo é a exacerbação do conceito de livre iniciativa em detrimento da preocupação, por parte do estado, em assegurar a equidade de direitos fundamentais entre os cidadãos, sejam eles mais ou menos aquinhoados. Alguns fatos recentes, no âmbito da pandemia, expuseram sem retoques essa face asquerosa do capitalismo.
O último deles foi a posição acintosa do presidente da Câmara, Arthur Lira, do Centrão, em defesa do projeto que permite a aquisição pela iniciativa privada de vacinas para imunizar seus funcionários sem necessidade de doar toda a aquisição ao SUS, como prevê a atual legislação. Se essa proposta virar lei ficará definitivamente escancarada a elitização sanitária, ou seja, quem pode mais se salva, quem pode menos, morre sem vacina e estamos conversados. É totalmente falacioso o argumento dele segundo o qual liberar os empresários para comprarem vacinas e imunizarem funcionários e familiares agilizará a vacinação dos brasileiros. Com todas as letras, Lira afirmou que “estamos em momento de guerra, e na guerra vale tudo para salvar vidas”. Sim, vale tudo, desde que seja para salvar TODAS as vidas, e não apenas as vidas dos mais bem aquinhoados. Fora daí, vai se criar uma “lista vip da vacinação”. Nada mais elitista. Nada mais cretino. Nada mais condenável.
Leia também
Pra que velho quer UTI?
Na mesma linha, Janaína Pascoal, que se auto-intitula jurista, recomendou que os jovens tenham prioridade na busca por leitos de UTIs para covid-19 e o estabelecimento de regras para escolha dos pacientes. “Eu me preocupo com todas as vidas! Mas as vidas daqueles que viveram menos me preocupam mais. Aliás, penso que estejamos no momento de estabelecer regras para priorizar o uso dos recursos disponíveis: leitos, respiradores, etc. É pesado mas é necessário”. Pois afirmo: não é pesado nem necessário, senhora “jurista”. Aliás, essa forma de pensar já resultou menos de um século atrás num pesadelo chamado nazismo que, em nome da purificação de uma raça, mandou para câmaras de gás e fornos crematórios 6 milhões de judeus. Portanto, sem ressalvas, seu raciocínio não apenas elitista: é nazista. Com todas as letras.
Durante o feriadão da Páscoa, a Secretaria de Saúde do DF limitou a vacinação apenas pelo sistema de drive-thru. Ou seja, para os que têm carro. E os que não têm? Ah, que esperem pelo fim do feriadão, ora. Quem mandou não ter dinheiro pra comprar carro e poder se vacinar?
Se os presos vão mofar na prisão, então que sejam cobaias
PublicidadeNa mesma toada enojante e elitista, a apresentadora Xuxa Meneghel teve de se desculpar depois de defender que presos deveriam ser cobaias para testes de remédios e vacinas. “Eu acho que existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas que estão aí pagando seus erros em ad eternum, para sempre em prisão, e que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos”. E foi além: “Vai vir um pessoal que é dos direitos humanos e dizer: ‘Não, eles não podem ser usados’. Se são pessoas que já que vão viver 60 anos na cadeia, 50 anos na cadeia, e vão morrer lá, acho que poderiam usar um pouco da vida delas pelo menos para ajudar algumas pessoas, provando remédios, provando vacinas. Que pelo menos sirva para ajudar em alguma coisa”. Mengele, o médico nazista, fez experiências repugnantes usando judeus gêmeos, crianças e adultos para testar medicamentos, matando milhares deles. Usar presos como cobaias seria diferente em quê?
Isto tudo sem falar na pouca-vergonha dos empresários, políticos e detentores de cargos públicos que usam cargos e condição financeira para furar vergonhosa e criminosamente a fila da vacinação.
Os exemplos acima revelam com extrema crueldade o pensamento que se consolida quando se defende a existência de um sistema de livre concorrência sem preocupação social. Na base do “quem tem mais ou pode mais se salva, e o resto pode morrer”. A pandemia escancarou a cara mais repulsiva que o capitalismo introjetou no inconsciente coletivo da sociedade: a ideia do cada um por si. Tipo: “Se eu tenho mais dinheiro ou mais poder, posso passar na frente de todos”. Esse é precisamente o problema. Quando se trata de vidas, não interessa quem tem mais ou pode mais. TODOS têm exata e precisamente os mesmos direitos. Chico Anysio sintetizou a crueldade implícita na competição sem freios com o personagem Justo Veríssimo, um deputado que não parava de repetir: – Eu tenho horror a pobre! Eu quero que pobre se exploda! Eu quero é me dar bem!
Hoje, Justo Veríssimo diria: – Pra que pobre quer vacina? Vacina é pra mim, que sou rico, tenho carro, sou novo e não estou preso! Eu tenho horror a pobre, eu quero é que pobre se exploda!
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.