Na semana em que Goiás volta a bater recorde de mortes diárias por covid-19, o Ministério Público Federal no estado (MPF-GO) divulgou nota técnica recomendando “tratamento inicial” por meio de medicamentos ineficazes contra a doença ou sem eficácia cientificamente comprovada, como hidroxicloroquina, ivermectina e nitazoxanida.
O estudo de 117 páginas (íntegra abaixo) foi produzido a pedido do procurador da República Ailton Benedito e é assinado pelos infectologistas Ricardo Ariel Zimerman e Francisco Eduardo Cardoso Alves; pela biomédica Rute Alves Pereira e Costa; e pelo psicólogo Bruno Campello de Souza.
De acordo com o MPF-GO, Benedito tem chamado a atenção para a necessidade de revisar e atualizar sistematicamente as “medidas farmacológicas e não farmacológicas no tratamento da doença” para que se adaptem à evolução da pandemia.
O procurador já tinha sido citado em reportagem publicada em julho do ano passado pelo Congresso em Foco sobre membros do Ministério Público em diversos estados que recomendavam oficialmente o chamado “tratamento precoce”.
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A nota técnica também foi encaminhada aos demais poderes do estado e às prefeituras goianas. No ofício enviado aos municípios (íntegra abaixo), o procurador da República afirma que, após um ano de pandemia, “nem o mundo nem o Brasil nem o Estado de Goiás estão nas mesmas condições de ignorância de 1 ano atrás; ao contrário, nesse período, estudos clínicos foram realizados, cujos resultados vieram à luz, ao ponto de ser possível desenvolverem-se diversas vacinas para imunização do vírus, algumas das quais já em uso no Brasil, conforme exposto em nota técnica”.
De fato, em um ano de pandemia, centenas de estudos e pesquisas avançaram no entendimento de como o novo coronavírus age e como tratá-lo. Até vacinas foram desenvolvidas. Porém, até o momento, não há análises científicas avançadas o suficiente para que as principais autoridades de Saúde do Brasil e do mundo recomendem os medicamentos citados na nota técnica.
Nesse cenário, o estudo divulgado pelo MPF-GO se baseia em estudos ainda iniciais (preprints) e que ainda não foram submetidos, por exemplo, à revisão por outros acadêmicos ou publicados em periódicos.
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No documento, os profissionais não usam a expressão “tratamento precoce”, e sim “tratamento inicial”, classificado como aquele iniciado até o quinto dia de sintomas de covid-19.
“Na ausência de toxicidade significativa dos fármacos sugeridos nesta Nota Técnica, desde que respeitados os limites razoáveis de dose terapêutica não tóxica, seria imprudente exigir graus de
recomendação máximos que fossem oriundos exclusivamente de periódicos científicos ‘revisados por pares’, o que poderia resultar em perda de oportunidade de salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde”, dizem os autores na nota técnica.
No caso da hidroxicloroquina, a nota faz a seguinte ponderação:
“Ensaios clínicos em humanos de hidroxicloroquina ainda têm dificuldade em estabelecer em definitivo sua utilidade como tratamento para COVID-19, porém já existem diversos estudos mostrando evidência de benefício em diversos graus, o que não significa comprovação de eficácia, porém está muito longe de significar ausência de evidência científica. O atual grau de evidência científica da hidroxicloroquina já é igual ao da maioria dos procedimentos médicos consignados em guidelines de sociedades médicas”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem entendimento diferente e, nesta semana, publicou na revista científica “The BMJ” diretriz segundo a qual a hidroxicloroquina não deve ser usada como tratamento preventivo contra a covid-19. De acordo com o portal G1, a diretriz se baseia em diversos estudos científicos realizados com um total de seis mil pacientes e indica que o medicamento não provocou melhora no quadro dos pacientes.
No Brasil, em janeiro, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) divulgaram nota conjunta reforçando que “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no ‘tratamento precoce’ para a COVID-19 até o presente momento”.
“Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil”, afirma o comunicado.
As organizações alertam que a “desinformação dos negacionistas que são contra as vacinas e contra as medidas preventivas cientificamente comprovadas só pioram a devastadora situação da pandemia em nosso país”.
Autores escolhidos a dedo
Desde o início da pandemia o presidente Jair Bolsonaro e aliados defendem publicamente tratamentos ineficazes contra a covid-19 e questionam medidas de combate à disseminação do vírus, como o isolamento social e uso de máscaras.
Como amplamente divulgado pelo Congresso em Foco e pelos demais veículos de comunicação, o próprio governo federal criou um aplicativo que prescrevia o chamado “tratamento precoce” indiscriminadamente, até mesmo para sintomas de ressaca. Após uma chuva de críticas, a ferramenta foi tirada do ar.
Assim como o fazem na nota técnica, os autores têm defendido há meses nas redes sociais os medicamentos ineficazes contra a covid-19 e criticado medidas como o isolamento social.
De acordo com reportagem publicada em 29 de janeiro pelo blog Estadão Verifica, do jornal Estadão, vídeo no qual o infectologista Ricardo Zimerman defende uma série de remédios como tratamento da covid-19 viralizou e foi inclusive compartilhado pelo empresário bolsonarista Luciano Hang. Artigo assinado pelo infectologista em março do ano passado na Folha de S.Paulo argumentava contra a adoção de medidas “drásticas” de isolamento social. O texto foi recomendado pelo ex-ministro Osmar Terra, líder de desinformação sobre a pandemia no Twitter.
Merece leitura o artigo do Dr. Ricardo Ariel Zimerman na folha de hoje. Ele é um importante infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre pic.twitter.com/RMrbdnsqSR
— Osmar Terra (@OsmarTerra) March 21, 2020
O segundo infectologista a assinar a nota técnica, Francisco Eduardo Cardoso, mantém um canal no Youtube chamado “Dois e dois são quatro” no qual questiona uma série de medidas adotadas no combate à pandemia, principalmente o isolamento social.
Em um dos vídeos, postado há oito meses, o infectologista se propõe a analisar cinco “falácias e enganos” cometidos ao longo da crise sanitária. Ao longo do vídeo, Cardoso questiona instituições como OMS e a universidade britânica Imperial College, de Londres.
Na avaliação do infectologista, o novo coronavírus é altamente contagioso. Assim, a menor quantidade de pessoas na rua já é suficiente para o vírus se propagar, não sendo necessário manter todos em casa. Ele defende, por exemplo, que apenas os mais vulneráveis fiquem isolados, e a chamada imunidade de rebanho.
“A economia é vida. Se você prejudica a economia você está matando pessoas […] Eu desafio qualquer pessoa que seja a pegar os dados oficiais e mostrar, por exemplo, que o isolamento social tenha salvo alguém ou que essa pandemia já não tenha passado pelo seu pico”, afirma no vídeo. A última postagem no canal foi há sete meses.
Nesta semana, o país enfrenta seu pior momento na pandemia. Com os sistemas municipais, estaduais e federal de saúde à beira ou já em colapso, na última segunda-feira (1º) secretários de saúde defenderam um toque de recolher nacional. Estados já têm endurecido as medidas de restrição, com a determinação de lockdown diante da alta ocupação das UTIs e da lentidão da vacinação.
Em toda a pandemia, o Brasil perdeu mais de 259 mil vidas para a covid-19, sendo 1.910 só nas últimas 24 horas. No Goiás, as mortes somam 8.714, sendo 169 nas últimas 24 horas.
O Congresso em Foco questionou o MPF-GO e o procurador da República Ailton Benedito sobre os riscos das recomendações feitas, porém, ainda não recebeu uma resposta. O espaço está aberto para manifestações.