Eugênio Aragão *
A campanha presidencial de 2018 revelou o descontrole sobre a “usina” virtual que vem irrigando redes sociais e dispositivos de mensagens pessoais com mentiras grotescas para iludir eleitores. A campanha da extrema-direita é campeã no uso do estratagema.
Todos os dias são inventadas novas estórias. Não são tiradas do nada, mas maliciosamente construídas com fotografias desconexas da narrativa, fac-símiles forjados, notícias pretéritas desmentidas há tempos, interpretações equivocadas da bíblia sagrada e até montagens fotográficas, algumas com técnicas amadoras e outras com programas de edição que provocam a sensação de serem reais.
Não é de causar surpresa reportagem publicada quinta-feira (18) em um jornal de grande circulação nacional que trazia na manchete: Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp – com contratos de R$ 12 milhões, prática viola a lei por ser doação não declarada. Há muito avisávamos à Justiça Eleitoral do uso indevido e até criminoso deste tipo de expediente.
Agora, às vésperas do pleito, o TSE terá que oferecer respostas quanto ao uso de poder econômico influenciando o resultado das eleições brasileiras, dinheiro que ao que tudo indica não foi declarado e pode configurar prática de caixa dois e culminar com a inelegibilidade do candidato a presidente pelo PSL.
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É preciso que entendamos que o público-alvo dessas invectivas virtuais são pessoas não necessariamente com baixa escolaridade, mas com alta impulsividade impensada, típica de quem dedica tempo demais às redes sociais e aplicativos de mensagens eletrônicas.
PublicidadeEstas pessoas se expõem sem nenhum pudor, são indivíduos influenciáveis pela ira maquinadamente incutida em anos de despejo de algoritmos raivosos, produtores maciços de ódio para os chamados “influenciadores digitais”. Esse é o perfil de quem absorve e reproduz acriticamente notícias fraudulentas de uma campanha com elementos claramente fascistas.
A enxurrada de mentiras é tal que o modo tradicional de combatê-las tem se demonstrado ineficiente. O grupo de apoio jurídico da campanha de Fernando Haddad tem ido regularmente ao Tribunal Superior Eleitoral, requerendo a retirada de perfis de difusão de inverdades, as popularmente conhecidas fake news. Tem pedido também direito de resposta, por ferirem sistematicamente a honra dos candidatos a presidente e a vice.
O nível de grosseria chega a ser criminoso, flanando entre a injúria, a difamação e a calúnia – todas correspondendo a delitos de ação penal pública incondicional no âmbito do direito eleitoral.
Houve pedidos reiterados para a tomada de providências à Justiça Eleitoral para identificar os produtores e difusores das mentiras no WhatsApp, muito antes da matéria publicada ontem. Só no primeiro turno, foram manejadas mais de 150 ações pela defesa da candidatura Haddad-Manuela e, no segundo turno, as iniciativas já chegam ao redor de 40. Mas o resultado para conter o ímpeto danoso dessa prática desleal é limitado.
Não há dúvida que o trabalho de distribuição de notícias falsas tem logística, sistema e vulto profissional e financeiro. Mal se consegue derrubar, por via de provimento liminar do TSE, algumas dezenas de perfis identificados como fontes, e já aparecem outras tantas dezenas de novos perfis.
Há suspeitas do uso de robôs virtuais para promover a disseminação multiplicada de memes noticiosos. Não se trata, em definitivo, de impulsionamento espontâneo de eleitores isolados. Não se chega, em curtíssimo espaço de tempo, a milhões de acessos e compartilhamentos sem ajuda de experts.
É urgente que a Justiça eleitoral entenda a extensão do problema. As poucas decisões sobre retirada de perfis não intimidam os estrategistas da campanha de Jair Bolsonaro. Os pedidos de direito de resposta são sistematicamente negados em nome daquilo que se convencionou chamar de “liberdade de expressão”, que, no caso de uma eleição presidencial, pode dar lugar a leniência para com a mentira, com a má-fé, com o jogo fraudulento e criminoso contra a verdade dos fatos.
Chega a ser preocupante a decisão de um dos ministros de considerar legítima, dentro do embate eleitoral, divulgação caluniosa contra Fernando Haddad, feita pelo ativista de extrema-direita Olavo de Carvalho, a dizer falsamente que, em obra escrita sua, o candidato estaria a fazer apologia do incesto.Tolerar esse baixo nível de desqualificação mentirosa do adversário não é razoável.
Parece não haver, por óbvio, de parte da Justiça eleitoral, vontade política de enfrentar com mais rigor os delitos do candidato que, com retórica fascista, incentiva a barbárie humana. Quem sabe com a nova denúncia envolvendo empresas brasileiras disseminando notícias falsas por aplicativos de mensagens algo seja feito.
Pois o fato é que, enquanto isto, embalado pelas fake news, Bolsonaro parece estar a um passo da vitória pelas pesquisas de opinião.
Presta-se um enorme desserviço à democracia e a nossa cultura política. Claro que cabe à defesa da candidatura atacada promover as medidas judiciais para combater a prática criminosa, mas o interesse público vai muito além da tutela individual. Não é à toa que o legislador qualificou os crimes eleitorais como de ação pública.
A razão disso é que o direito de eleitores se informarem numa campanha eleitoral é sagrado. Dele depende a legitimidade do voto e do pleito. O eleitor induzido a erro por mentiras construídas por candidatura inidônea não pode ser tratado como um problema menor. A liberdade de expressão não é liberdade destinada a desinformar para ganhar eleição na fraude.
Por isso, deve a Justiça eleitoral assumir, pois ainda temos alguns dias antes do resultado final desta eleição, o protagonismo da ação contra esse “marketing da enganação”. É sua função precípua zelar pela regularidade das eleições e por seu caráter democrático e representativo.
Fechar os olhos ou embaçá-los diante dessa prática criminosa feita às escâncaras é inaceitável num estado de direito e podem ser os agentes públicos da administração e jurisdição eleitoral os principais responsáveis pela deformação de nosso regime representativo, se a candidatura que se utiliza de artifícios mentirosos for bem sucedida no dia 28 de outubro.
Uma eleição deve e pode ser ganha por qualquer candidato, mas jamais por uma candidatura que invente mentiras e se utilize de “armas” desleais para convencer o eleitor de que vale qualquer estratégia para a conquista do objetivo almejado.
Oxalá tenhamos tempo para que a mentira não vença esta eleição!
* Ex-ministro da Justiça, foi subprocurador-geral da República e é professor titular de Direito Internacional da Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Direito pela UnB, Mestre em Direito Internacional pela Universidade de Essex (Inglaterra) e doutor em Direito pela Ruhr-Universität Bochum (Alemanha). Atualmente comanda o escritório Aragão e Ferraro Advogados.
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