Nilto Tatto*
Recentemente uma ampla mobilização da sociedade provocou o naufrágio da Medida Provisória 910, mais conhecida como MP da grilagem; uma justa, merecida e precisa alcunha por expressar a essência daquele projeto: afrouxar a legislação atual sobre regularização fundiária para permitir a titulação de grandes áreas invadidas, de até 2.500 hectares, no interior das glebas públicas na Amazônia.
Na iminência da derrota, e antes mesmo que a MP tivesse caducado no Congresso Nacional, os interesses a ela associados ressurgiram na forma de um projeto de lei, mas agora por iniciativa parlamentar. Trata-se do PL 2.633/20, apresentado pelo Deputado Zé Silva (SD-MG). Em que pese mudanças significativas em relação ao texto da MP 910, a essência é a mesma, ou seja, caso aprovada, a nova lei irá facilitar a legalização de áreas públicas invadidas por pessoas que se apossaram ilegalmente de grandes extensões, de até 2.500 hectares. Ou seja, irá baixar a guarda e abrir passagem para oficializar a grilagem. Certamente não é essa a intenção do proponente, mas será essa a consequência prática da sua proposta.
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E quais são as razões que nos permitem fazer essa denúncia? São as mesmas debatidas durante a malfadada MP 910, sendo a principal delas o fato de que para resolver o problema da regularização fundiária de legítimos posseiros de terras públicas da Amazônia já existe legislação, a principal delas estabelecida pela Lei 11.952, aprovada em 2009. Essa lei, sancionada pelo Presidente Lula, reconheceu o direito à titularidade da terra de milhares de camponeses posseiros espalhados pela Amazônia, a maioria deles vítimas do modelo de desenvolvimento da região, implantado a partir da década de 70, que os relegou a uma situação de pobreza e desamparo por parte do Estado.
Essa categoria social, de camponeses e agricultores familiares, representa a maioria absoluta dos beneficiários da regularização fundiária.
Dos aproximadamente 200 mil imóveis rurais cadastrados pelo Incra para serem regularizados na Amazônia, 95% possuem menos de quatro módulos fiscais e estão ocupados por esses trabalhadores e trabalhadoras rurais. Para conceder o título de propriedade a esse público, e também para conceder o direito real de uso de áreas coletivas das comunidades tradicionais, não é necessário alterar uma vírgula da legislação atual. Essa visão é defendida pelos maiores especialistas do direito agrário do país, pelas lideranças dos movimentos sociais do campo, pelos ambientalistas, pelo Ministério Púbico Federal, por vários institutos de pesquisa da academia, por personagens da cultura e por vários partidos comprometidos com as lutas camponesas e populares.
PublicidadeMas a lei em vigor beneficia também ocupantes de áreas maiores, permitindo a regularização de até 2.500 hectares. A diferença é que para esses ocupantes os critérios para a legalização são mais rígidos. E não poderia ser diferente, pois é de amplo conhecimento o fato que a questão da terra na Amazônia é marcada pela violência, pela invasão de terras indígenas, das áreas protegidas, pela expulsão de famílias pobres, pelo desmatamento e saque da natureza; e pelo assassinato de lideranças sindicais, indígenas, ambientalistas, religiosas e defensores dos direitos humanos.
É justamente para evitar que pessoas e grupos de poderosos associados a tais crimes sejam premiados que a lei estabelece critérios e procedimentos de verificação que não podem ser dispensados, como pretendia a MP 910 e agora pretende o projeto de lei do deputado Zé Silva.
A legislação vigente assegura ao governo a base jurídica que lhe permite adotar todos os meios necessários para avançar na regularização fundiária estabelecendo, inclusive, a vinculação entre as políticas fundiária e ambiental. O PL 2.633/20, ao permitir de forma facilitada a titulação de áreas com passivos ambientais, rompe com esse vínculo e abre as portas para novos desmatamentos nas áreas regularizadas.
Estudo recente divulgado pelo Projeto MapBioma revela que 99% do desmatamento no Brasil é ilegal. Outros estudos já apontaram que o desmatamento aumentou em áreas tituladas pelo Programa Terra Legal. Esses estudos alertam de que a regularização fundiária sem articulação com políticas ambientais pode favorecer a expansão de atividades que destroem a floresta.
Por isso, o que a Amazônia precisa é de um de um projeto de desenvolvimento que ao mesmo tempo utilize e preserva a natureza na sua integridade, não apenas as florestas. Um projeto que vinha sendo construído nas últimas décadas e que o governo Bolsonaro interrompeu querendo abrir caminho para a boiada passar, como defendeu o ministro Salles.
A alegoria utilizada pelo ministro para exaltar sua obra de desmonte da legislação ambiental – e incentivar seus pares para que façam o mesmo em cada pasta – representa também o compromisso do ministro e do governo Bolsonaro com os setores mais arcaicos do agronegócio do país empenhados em subjugar a Amazônia sob a marcha da pata do boi, o modelo de ocupação predatório de outrora.
Essa marcha está em curso, comandada por Nabhan Garcia e sua tropa, da qual Salles não passa do porteiro colocado à frente da comitiva para abrir a porteira da devastação. Tudo isso sob a tutela e cumplicidade da ministra Tereza Cristina, chefe direta do primeiro e beneficiária dos malfeitos do segundo. Uma ministra de dupla face que à luz dos holofotes faz o discurso contra o desmatamento e nas sombras do Ministério da Agricultura projeta a expansão da fronteira agrícola sobre novas áreas do Cerrado e da Amazônia, sem um plano que de fato evite mais desmatamento.
A Amazônia e o povo amazônida não merecem o destino a que estão sendo conduzidos por esse governo. É urgente ampliar no parlamento e na sociedade o debate em torno de um projeto que recoloque a Amazônia na vanguarda da reconstrução do país, resgatando as conquistas das últimas décadas e avançando em outras frentes. Há muito acúmulo nesse sentido, inclusive no âmbito do Congresso Nacional. Devemos nos empenhar para definir uma pauta afirmativa que contribua com o projeto desejado, refutando ao mesmo tempo as propostas que vão na sua contramão.
Se a Amazônia que queremos for um lugar de justiça social e bem-estar do seu povo, liberto dos conflitos fundiários e da ganância de uma minoria que hoje, como ontem, se apropria da terra e da natureza em detrimento do bem comum, a primeira tarefa a cumprir é lutar para que o PL 2.633 não prospere.
*Nilto Tatto (PT-SP) é deputado Federal .