Da semana passada a MP 910, batizada por óbvias razões de MP da Grilagem, começou a ganhar espaço na apertada agenda de votações do plenário da Câmara.
A notícia da hora é que até o dia 06 de maio (4ª feira) o deputado Rodrigo Maia pode voltar atrás no seu compromisso assumido com a oposição de não colocar pra votar temas não relacionados ao enfrentamento do covid-19, polêmicos e de dissenso.
>A música que o Brasil deve tocar no pós-pandemia
Como não há Comissão Mista operando infelizmente os debates, diálogos e supostas negociações sobre textos e contextos estão ocorrendo por zaps e zooms (ferramenta de encontros virtuais) com baixíssima ou nenhuma transparência e participação social.
De 6ª feira (1º de Maio) até o momento em que teclo essas letras consta que foram quase meia dúzia de versões de substitutivo do deputado Zé Silva circulando. O deputado Zé Silva está assumindo um papel de ruralista light focado em resolver problemas de pequenos produtores, mas que infelizmente está sendo pressionado pela ala hard do Ogronegócio e do Mapa (ala Nabhan Garcia) para tentar viabilizar um texto que salve interesses que vão bem além dos pequenos de boa-fé.
O último texto a que tivemos acesso de ontem (dia 04 à noite) ainda continha propostas inaceitáveis e que somente servirão para atender a médios e grandes ocupantes de terras públicas que desmataram ilegalmente. Apontarei aqui somente duas das mais graves propostas contidas no texto.
(i) Benefício aos grandes posseiros/grileiros
A última proposta que conta com aval da ministra Tereza Cristina (Agro) e da Frente ruralista (FPA) permite regularização de áreas de até 2500 hectares. Isso corresponde a 25 vezes a área do famoso Parque do Ibirapuera em SP. Isso pode significar beneficiar imóveis com área superior a seis vezes a área máxima considerada para pequenos posseiros (4 MF). Isso significa, de acordo com dados do próprio Incra, beneficiar mais de 5 mil posseiros com área total de mais de 3,4 milhões de hectares entre médios e grandes. Vale dizer que, de acordo com dados da UFMG, mais de 97,5% dos pequenos beneficiários (mais de 198 mil posseiros) detém pouco mais do que esses 5mil grandes posseiros que poderão ser premiados por ocupar terras públicas. Os grandes correspondem a somente 2,5%, mas detém mais de 30% da área total em regularização.
O deputado Federal Zé Silva se comprometeu publicamente ontem na Live do Congresso em Foco a defender medidas de desburocratização e automatização da regularização somente para pequenos (até 4 MF).
O último substitutivo do deputado Zé Silva também permite que imóveis acima de 4 até 15 módulos possam ser regularizados sem vistoria. Além disso, o projeto permite ao posseiro, mediante um cadastro auto-declaratório, sem nenhuma vistoria de campo, receber o título de terra, apesar de estar ocupando, por exemplo, uma terra indígena já demarcada e cujo processo de homologação ainda não esteja finalizado, ou ainda áreas ocupadas historicamente por populações ribeirinhas ou extrativistas, ou pequenos posseiros, cuja regularização não foi sequer iniciada ainda. Mesmo que haja sobreposição do cadastro ambiental rural, o que poderia apontar potencial conflito, a vistoria de um servidor do Incra estará dispensada pelo último relatório do dep. Zé Silva a que tivemos acesso, para imóveis com até 15 módulos o que pode chegar a 1650 hectares em algumas regiões da Amazônia, ou até 30 hectares no Distrito Federal, que é alvo de grilagem crescente no atual governo.
(ii) Prêmio aos criminosos ambientais e do desmatamento ilegal
Apesar de alertados de que crime ambiental (desmatamento de áreas de preservação permanente e reserva legal) não pode gerar expectativa tampouco direitos de regularização fundiária, tanto a ministra Tereza Cristina, quanto o deputado Zé Silva, insistem em manter no texto que somente imóveis com embargo pelo Ibama e auto de infração lavrado pelo órgão federal estejam impedidos de regularização fundiária facilitada (sem vistoria e descontos nos preços).
Essa condição para a perda do direito de regularização significa premiar duplamente o criminoso (que desmatou APP e RL) e incentivar mais crimes na expectativa de ser premiado. Mesmo tendo cometido um crime ambiental, mediante a assinatura de um simples termo de ajustamento de conduta administrativo o posseiro passará a ter o direito de receber o título da terra, sem vistoria, com desburocratização e por preços muito abaixo do preço de mercado. Se for imóvel com até 2,5 mil hectares (mais de seis vezes a área de um pequeno) pagará o preço da terra nua (também abaixo do preço de mercado em regiões com mais infraestrutura) e poderá receber o título da terra.
O que deveria ser uma sanção compensatória jurídica por um crime ou uma infração (um TAC) vira passaporte para premiação com título facilitado de domínio sobre terra pública.
É evidente que tal condição vai resultar num aumento de pressão contra a fiscalização e a responsabilização ambiental pois somente sem o embargo e sem a autuação administrativa lavrada e transitada em julgado o “criminoso/infrator” ainda terá o direito à regularização.
Isso pode significar (como já vem acontecendo) forte pressão de setores dominantes no meio rural, sobretudo no Norte e Nordeste (mas não somente), contra a fiscalização estadual e federal que já vem perdendo apoio do “alto comando” de governo, além de orçamento. Recentemente um diretor de fiscalização do Ibama foi exonerado pelo Ministro Salles (do Meio Ambiente) por cumprir a lei à risca e agir duramente contra desmatamentos e garimpo ilegal.
O deputado Zé Vitor também ontem na Live do Congresso em Foco afirmou logo na sua primeira intervenção ser contra beneficiar grileiros e criminosos ambientais ou premiar desmatamento ilegal.
Portanto se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Ainda que haja algum esforço de parlamentares para tentar um texto que não incentive mais crime fundiário e ambiental e foque na solução a quem realmente precisa de facilidades (os pequenos de boa-fé) o “ogro”negócio (ala do Secretário Nabhan Garcia no Mapa) continua insistindo na aprovação “a fórceps”, agora possivelmente turbinada pela barganha de cargos do Centrão com o governo federal.
Se correr o bicho pega. Se a frente ambientalista veta acordo ou tentativa de mitigar perdas podemos ser engolidos caso o presidente Rodrigo Maia descumpra seu compromisso e ceda à tentação de estar “de boa” com o ruralismo arcaico brasileiro, ainda forte no parlamento.
Se ficar o bicho come. Pois apesar das boas intenções do Deputado Zé Silva de negociar um texto “menos pior”, na hora H os negociadores que o lastrearam podem apresentar destaques e emendas, ou até mesmo um substitutivo que tragam de volta os piores pesadelos da MP 910 e do relatório do Senador Irajá, que naufragou porque radicalizou em favor de grileiros e criminosos ambientais. Sinceramente espero estar errado nas duas hipóteses!
Mas haverá uma terceira via?
Porque não discutir esse assunto da maior relevância para o desenvolvimento agroambiental brasileiro por meio de um Projeto de Lei, com tempo para uma boa discussão, aberta e transparente, fora desse sistema de deliberação remota e sem a guilhotina do prazo da MP no pescoço?
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