O governo brasileiro ignorou dados sobre o crescimento do desmatamento na gestão do presidente Jair Bolsonaro e se apoiou em números da era petista ao repudiar críticas feitas pela França à política ambiental do Brasil. Em resposta a um estudo encomendado pelo governo francês que põe em dúvida a viabilidade de um acordo União Europeia e Mercosul por causa do Brasil, os ministérios das Relações Exteriores e da Agricultura destacaram, em nota publicada na última terça-feira (22), uma conjuntura que, segundo as duas pastas, mostra que o Brasil “é capaz de aumentar sua produção de carne, soja e milho ao passo em que diminui o desmatamento.”
“De 2004 a 2012, o desmatamento da região chamada de Amazônia Legal caiu 83%, enquanto a produção agrícola subiu 61%. Nesse mesmo período, o rebanho bovino cresceu em mais de 8 milhões de cabeças, chegando a 212 milhões em 2012. Esses dados inserem-se em tendência histórica de intensificação da agropecuária brasileira e dos decorrentes ganhos de produtividade, em sintonia com a preservação ambiental”, diz trecho do comunicado assinado pelos dois ministérios. O período abrange os dois governos Lula e os dois primeiros anos de Dilma Rousseff.
A nota não faz referências a dados posteriores, das gestões Dilma, Michel Temer e Bolsonaro. O atual presidente, assim como o seu vice, Hamilton Mourão, e o seu ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, não aceitam os dados indicados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão de monitoramento do governo federal, que aponta aumento no desmatamento e nos incêndios florestais no país.
Levantamento feito pelo Congresso em Foco com base em informações da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e do Prodes, do Inpe, mostra que o desmatamento cresceu pelo menos 49% na Amazônia Legal de 2012 para cá, período ignorado pela nota oficial dos ministérios. Nesse intervalo, a produção agrícola na região cresceu 66%. O Prodes é o projeto que realiza o monitoramento por satélites do desmatamento por corte raso na Amazônia Legal e produz, desde 1988, as taxas anuais de desmatamento na região.
Para a bióloga Ludmila Rattis, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), organização não governamental científica, o discurso do governo brasileiro teria de ser outro se tivessem sido incluídos dados mais recentes sobre desmatamento no país.
“O gráfico mostra como trajetória mudou. Até 2012 indica uma queda de desmatamento com aumento da produção. O Brasil continua aumentando a produção, o que é muito bom, só que o desmatamento voltou a crescer de 2012 para cá”, disse a doutora em Ecologia pela Unicamp ao Congresso em Foco. “Com as tecnologias que temos para produção hoje, não cabe mais uma curva ascendente de desmatamento em lugar algum do mundo”, completou a pesquisadora.
PublicidadeProcurados pela reportagem, os ministérios da Agricultura e das Relações Exteriores, que assinam o comunicado, a pasta do Meio Ambiente não retornaram o contato para comentar porque não foram citados dados mais recentes na nota oficial.
O relatório encomendado pelo presidente Emannuel Macron sustenta que o acordo entre a União Europeia e o Mercosul, assinado no ano passado, tem potencial de acelerar ainda mais o desmatamento na América do Sul e não prevê mecanismos suficientes para assegurar o combate às mudanças climáticas e proteção da biodiversidade.
O estudo feito pela França considera que o acordo de livre-comércio deve favorecer a abertura de novas áreas de pastagem entre os países do Mercosul, para suprir o aumento da produção de carne bovina destinada à União Europeia. Estimativa feita pelo painel francês prevê um aumento anual de até 5% no ritmo do desmatamento pelos seis seguintes ao início da vigência do acordo.
Na resposta pública, o Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores afirmaram que o relatório francês “revela as reais preocupações protecionistas daqueles que o encomendaram ao tratar das concessões agrícolas feitas pela UE ao Mercosul”.
Segundo o governo brasileiro, a não entrada em vigor do acordo entre os dois blocos passaria mensagem negativa e estabeleceria “claro desincentivo aos esforços do país para fortalecer ainda mais sua legislação ambiental”, além de provocar “implicações sociais e econômicas negativas, que poderiam agravar ainda mais os problemas ambientais da região”. A sua ratificação, por outro lado, fortalecerá a relação entre as partes e “a reiteração de um livre comércio sustentável e responsável, que proporcionará prosperidade com preservação da natureza, resultante da melhoria das condições econômicas”.
Esta não é a primeira vez que o governo Bolsonaro usa dados de gestões petistas para se defender de críticas internacionais à sua política ambiental. Diplomatas de todos os principais postos brasileiros no exterior receberam uma circular da Secretaria de Relações Exteriores, listando argumentos que devem ser utilizados para defender a política ambiental brasileira, em meio a críticas de pesquisadores e governos estrangeiros à gestão de Jair Bolsonaro.
Conforme mostrou em agosto de 2019 a BBC Brasil, o Itamaraty orienta seus diplomatas a afirmarem que os índices de desmatamento na região amazônica tiveram “redução significativa, de 27.700 km² em 2004 para 7.500 km² em 2018 (redução de 72%)”. O documento não cita, porém, que nesse período só houve redução de desmatamento entre 2004 e 2012, nos dois governos Lula e na primeira metade da gestão Dilma.