Paula Groba*
Engana-se quem pensa que a única saída para a transição de combustíveis fósseis para um transporte a base de energia mais limpa e renovável seja apenas a produção de carros, caminhões ou ônibus elétricos. Eles são sim uma valiosa alternativa, a médio e longo prazos. Mas o Brasil já trabalha com algo mais viável para o presente, e que pode ser a ponte entre combustível fóssil e a tão almejada frota de veículos elétricos: os biocombustíveis, que vêm apresentando resultados significativos em termos de redução em emissões de CO2.
Privilegiado por sua localização na região tropical do planeta, pela alta incidência de energia solar, regime de chuvas adequado em grande parte do território e terras agricultáveis, o Brasil é hoje um dos únicos países do mundo onde é possível aliar a produção de alimento à de energia, sem competição direta. Isso faz do país um possível líder em produção de biocombustíveis, tanto para o mercado nacional, quanto internacional.
Segundo pesquisas recentes feitas no Brasil, se adotarmos, na frota urbana de ônibus, a mistura de 20% de biodiesel no diesel fóssil (B20), as 40 cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes podem diminuir em até 70% as emissões de CO2 causadas na fase de produção do biocombustível, comparando com diesel fóssil, e ainda cerca de 15% na queima dessa mistura de biodiesel e diesel.
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Cada ônibus utilizando a mistura de 20% de biodiesel no diesel fóssil (B20) representa uma redução de 18 toneladas/ano CO2 o que equivale a plantar 132 novas árvores por ano. Considerando que a frota de ônibus urbanos no Brasil, de acordo com a NTU — Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, é de 107 mil ônibus, o uso do B20 em toda a frota significa evitar cerca de 2 milhões de toneladas de CO2 por ano e mais de 14 milhões de novas árvores.
De olho nessa janela de oportunidades e no cumprimento de metas firmadas no Acordo de Paris, durante a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, em 2015 (COP21), o Congresso Nacional aprovou e o governo brasileiro sancionou a Lei que criou a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), em dezembro de 2017, o que abriu caminhos para estimular a produção desse tipo de combustível renovável no país.
PublicidadeA regulamentação está em curso. As metas aprovadas para o Renovabio foram propostas pelo Ministério de Minas e Energia, e submetidas à consulta pública em maio deste ano. O Renovabio tem data para começar a ser implementado efetivamente: janeiro de 2020. A resolução do Conselho Nacional de política energética (CNPE), de junho de 2018, estabeleceu a meta de redução para comercialização de combustíveis de 10,1% de redução de CO2, em 2028.
Antes desse prazo, algumas concessões já estão sendo feitas para que a produção de biocombustíveis seja estimulada. Um exemplo é a adição do biodiesel ao óleo diesel em quantidades graduais, ano a ano. Em 2017, o percentual foi ampliado de 7% para 8% e em 2018 para 10%. O governo já estuda a ampliação para 11%, em 2019.
Apesar de ainda corresponder a uma pequena parcela do combustível, cada 1% a mais de adição do biocombustível é importante já que, para cada litro de biodiesel consumido no país, um litro de diesel comum deixa de ser necessário, reduzindo as emissões de poluentes e a importação de combustível fóssil.
Outra vantagem é que os veículos não necessitam de alterações nos motores para utilizar o combustível sustentável. Além disso, no Brasil, o biodiesel passou a ser mais barato que o combustível fóssil nos últimos anos.
Segundo o boletim de agosto de 2018 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), com a adição de 10% de biodiesel ao diesel comum, os preços do combustível de petróleo podem recuar dois centavos de real por litro ao consumidor. Foram negociados 993,6 milhões de litros de biodiesel no último leilão feito em agosto. No Brasil, a comercialização do biodiesel é feita por meio de leilões públicos organizados pela ANP. É nos leilões que as refinarias e importadores de óleo diesel compram biodiesel, para atendimento ao percentual mínimo obrigatório de adição de biodiesel ao óleo diesel e para fins de uso voluntário.
Em relação ao meio ambiente, alguns resultados dessas ações também já aparecem. No ano passado, dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), mostram que as emissões de CO2 evitadas pelo uso de etanol, biodiesel e bioeletricidade da cana-de-açúcar, por exemplo, foram de 60 MtCO2eq (milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente). Já na geração de empregos, segundo União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Única), nos primeiros 4 meses de 2018 foram gerados mais de 23 mil e quinhentos empregos diretos nos polos de Ribeirão Preto, Sertãozinho e Piracicaba, relacionados à indústria e comércio no setor.
O grande trunfo do Renovabio é contemplar produtores de biocombustíveis. Sem mexer em tributos, o programa prevê que quanto mais se produzir biodiesel de qualidade, poluindo menos, mais se ganha em créditos de descarbonização no mercado financeiro. Uma nova moeda, a CBio, será criada para pagar esses produtores que emitem menos CO2. O governo brasileiro inclusive já tem um modelo de calculadora que vai contabilizar a intensidade de carbono do biocombustível, gerando um índice em g CO2eq./MJ
O Renovabio é uma adaptação a políticas já executadas nos Estados Unidos e na Europa. Aproveitando a experiência da Califórnia, com o Low Carbon Fuel Standard (LCFS), o Brasil modificou alguns conceitos, mas aproveitou o que tem dado certo lá fora. Abriu mais possibilidades para uso de novas tecnologias, por exemplo.
O que se espera é que essa lógica estimule usinas a utilizarem melhores práticas de plantio e de geração de bioenergia, além de adotar novas tecnologias para serem beneficiadas. Usinas que, além de produzir etanol, também queimam resíduos da cana para gerar eletricidade ou produzem biogás para substituir o diesel usado nas máquinas poderão obter mais créditos do que as que não aproveitam a palha, o bagaço ou a matéria orgânica da vinhaça, que é o resíduo que resta após a destilação do caldo de cana-de-açúcar para a obtenção do etanol (álcool etílico). Para cada litro de álcool produzido, 13 litros de vinhaça são deixados como resíduo.
Segundo previsões de mercado da EPE, com a nova política, a tendência é de expansão do mercado de etanol combustível, de 26,7 bilhões de litros em 2018, para 47,1 bilhões de litros em 2028. Para o biodiesel, a expansão prevista é de 5,7 para 11,1 bilhões de litros, no mesmo período. E para o biometano, a expansão prevista é de 0 para 0,25 milhões de metros cúbicos por dia, nos próximos dez anos. No caso do bioquerosene essas metas ainda não estão definidas.
O Brasil fixou metas a serem atingidas principalmente após ter se comprometido a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa no Acordo de Paris. O compromisso brasileiro, no Acordo do Clima, é de redução de 37% das emissões de gases de efeito estufa até 2025 e de 43% até 2030, em relação aos níveis de 2005. Dentro dessas premissas, o Brasil se comprometeu a aumentar a participação de bioenergia sustentável na matriz energética para aproximadamente 18% até 2030. O objetivo é expandir o consumo de biocombustíveis, inclusive com a produção dos chamados avançados ou de segunda geração (produzidos geralmente a partir de culturas lenhosas, resíduos florestais, resíduos e detritos); aumentar a oferta de etanol; e ampliar a parcela de biodiesel na mistura do diesel.
A pretendida contribuição nacionalmente determinada (iNDC) do Brasil ainda prevê o alcance de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030, incluindo a expansão do uso de fontes de energia não fóssil e aumentando a parcela de energias renováveis (além da energia hídrica) no fornecimento de energia elétrica para ao menos 23% até 2030. E é aí que entram os biocombustíveis como atores principais no alcance dessas metas, com a participação da matriz de combustíveis líquidos, para transportes; e geração de energia elétrica, por meio do bagaço de cana-de-açúcar ou palha de arroz, por exemplo.
O Brasil já conta com um grande aliado em todo esse processo de análise, pesquisa e produção com menos degradação ambiental: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Há 13 anos, a Embrapa vem desenvolvendo pesquisas e monitorando a produção do biodiesel brasileiro desde a usina até os postos de combustíveis. Além disso, já trabalha na elaboração de uma calculadora eletrônica, a RenovaCalc, na qual os produtores de biocombustíveis poderão calcular quanto vão receber em moeda (Cbio) na bolsa de valores, por terem produzido biocombustíveis e emitido menos CO2. As distribuidoras serão obrigadas a comprar esses papéis em quantidade correspondente a sua participação no mercado de combustíveis fósseis.
As rotas de produção para cálculo no Renovacalc: o Etanol de cana-de-açúcar; o Etanol de milho em usina dedicada; o Etanol de milho importado; Bioquerosene de HEFA (Rota derivada de oleaginosas); Etanol de segunda geração; Etanol 1G2G em usina integrada; Biometano de resíduos; e o Biodiesel.
E o melhor: toda a produção certificada deve vir de área sem desmatamento após a data da sanção da Lei do Renovabio, dezembro de 2017. Além disso, toda a área deve estar em conformidade com o Código Florestal (legislação ambiental em vigor) por meio da regularização do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro eletrônico criado pelo Código Florestal, obrigatório para todos os imóveis rurais, formando uma base de dados estratégica para o controle, monitoramento, o combate ao desmatamento das florestas ou qualquer outra vegetação nativa do Brasil. O CAR prevê ainda planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais.
Outra boa notícia gerada pela produção de biocombustíveis é a inclusão social e a geração de emprego e renda. Além da captação de trabalhadores para a produção e comércio no setor, a agricultura familiar tem participação na produção de biocombustíveis. Na produção de biodiesel em média 30% da matéria-prima tem que ter origem na agricultura familiar. Em 2017, segundo a Ubrabio, foram movimentados no país cerca de 4 bilhões de reais com a comercialização de produtos vindos da agricultura familiar que atua no setor de biocombustíveis. São mais de 200 mil agricultores familiares envolvidos nessa cadeia produtiva.
A conta feita por órgãos do governo é relativamente simples: o produtor de biocombustível receberá 1 Cbio para cada 1 tonelada de CO2 eq reduzida. Ainda se estuda de que forma esses títulos serão regulamentados.
A expectativa do Ministério de Minas e Energia com o Renovabio é de que o Brasil obtenha um crescimento do interesse privado na indústria de biocombustíveis. A previsão de investimentos é de 90 bilhões de reais até 2030, apenas na produção de bioetanol, por exemplo.
Desafios
Os desafios estão no campo tecnológico e de controle. Espera-se que com a nova política e realidade de biocombustíveis no país sejam desenvolvidos incentivos para novas pesquisas e investimento em tecnologia e a busca de viabilidade econômica para implantar métodos mais sustentáveis de produção de bioenergia, principalmente no que se refere ao etanol de segunda geração, obtido a partir de celulose e de resíduos orgânicos.
No campo do controle, é preciso uma política de expansão de ocupação estratégica da produção que não afete biomas brasileiros, em especial o cerrado, um bioma fundamental no equilíbrio ambiental, na oferta de água do país e no controle e preservação das bacias hidrográficas subterrâneas.
Também existem variáveis sem definição no Renovabio. Espera-se que a solução venha com a regulamentação. Um exemplo é a definição de metas individuais impostas às distribuidoras e a forma de cálculo de a eficiência dos produtores. As metas são imprescindíveis para antever o funcionamento do mercado financeiro diante da cotação dos CBIOs.
A permissão para que qualquer pessoa participe da compra e venda de créditos também é algo ainda a ser discutido. Há opiniões diversas sobre esta definição. Quem defende, afirma que é preciso buscar liquidez dos futuros papeis. Mas algumas distribuidoras já temem a especulação de títulos. O Brasil está dando um grande passo rumo à implementação de uma política de descarbonização que poderá ser exemplo para outros países, mas falta organizar adequadamente a sua aplicação. Será preciso criar mecanismos de controle e avaliação constantes para que se evitem possíveis fraudes ao sistema.
A ideia é que com maior produção de biocombustíveis, o país busque cada vez mais tecnologia em busca de produtos cada vez menos poluentes, até que o país esteja preparado para receber a nova frota de veículos elétricos.
*Jornalista, cobre temas ligados ao meio ambiente no Senado. Como repórter multimídia, cobriu a COP 22 (Marrakech, Marrocos), COP 23 (Bonn, Alemanha) e o 8º Fórum Mundial da Água (Brasília, Brasil) para Rádio, Agência e TV Senado.
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