Heitor Scalambrini Costa*
A definição e construção de grandes obras, sem participação e controle social, virou sinônimo de corrupção, de destruição ambiental, de remoção forçada de populações (quase sempre dos pobres, de comunidades tradicionais).
No Brasil de hoje, no Brasil real, os exemplos estão ai para demonstrar o quanto se desvia dinheiro para fins escusos em obras justificadas pelos governantes como de interesse público (?), essenciais ao “desenvolvimento” (de quem?), para a geração de emprego e renda, etc, etc. A ladainha é a mesma, que não convence a mais ninguém de boa fé. E sempre os maiores beneficiários destes faraônicos empreendimentos são as empresas e seus serviçais lacaios transvestidos em agentes públicos.
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Verifica-se a repetição nos Estados da federação situações análogas, movidas por interesses meramente econômicos com propostas de grandes obras que causam insuperáveis consequências para as populações atingidas e para os ecossistemas. São constados no Brasil afora, prejuízos, perdas, desastres, expropriações, destruições de vidas e de bens, desgraças, muitas vezes permanentes e irreversíveis.
Foi anunciado recentemente em Peruíbe, município do litoral sul paulista, o Projeto Verde Atlântico Energias (PVAE), que além da construção de uma termelétrica, contará com gasodutos marítimo e terrestre, e um terminal offshore de gás natural liquefeito (GNL). O empreendedor, a Gastrading Comercializadora de Energia S.A., uma das empresas do Grupo Leros (conhece?), anuncia que fará os investimentos junto a outros investidores. Suspeita-se que a gigante petroleira Shell seja a maior interessada, e esteja por trás deste investimento, orçado em R$ 5 bilhões.
Esta usina de produção de energia elétrica a partir do GNL, denominada Usina Termelétrica Atlântico Energias, foi projetada para ser instalada em uma área de cerca de 43 hectares, localizada integralmente na Zona de Expansão Urbana do município de Peruíbe/SP, inserida em gleba com cerca de 180 hectares. A potência instalada prevista é de 1.700 MW. A plena carga consumirá de oito a nove milhões de m3/dia de gás.
Caso ocorra esta megaobra faraônica, será a terceira termelétrica (UTE) instalada na região. A primeira foi a termelétrica Aditya Birta Carbon Columbian Chemicals, e a segunda a Eusébio Rocha (219 MW), da Petrobras, ambas em Cubatão.
Como sempre tais empreendimentos são considerados “sigilosos” no que concerne as etapas de prospecção, negociações com os poderes públicos, definição do projeto e licenciamento. Se não fosse a existência de um jornalista investigativo a população deste território só conheceria o empreendimento depois das licenças concedidas pelos órgãos de Estado, na audiência pública exigida por lei, cujo formato é mais para anunciar, do que para discutir.
A UTE em questão prevê no seu funcionamento trabalhar num ciclo combinado, com quatro blocos geradores (cada bloco com uma turbina a gás e uma turbina a vapor acopladas no eixo de um mesmo gerador elétrico). Sua área abrangerá a zona de amortecimento dos parques estaduais da Serra do Mar e Xixová-Japuí, alé do território da Área de Proteção Ambiental (APA) Marinha do Litoral Centro. Atingindo ainda área natural tombada e terras indígenas. Sua distância será de apenas 4,7 quilômetros da terra indígena Piaçaguera. A linha de transmissão atingirá também a Itaóca, Guarani do Aguapeu e Rio Branco.
Outras instalações do complexo serão os gasodutos marítimos e terrestres de transporte do gás natural de 10 quilômetros de extensão (marítimo) e tubulação de 20” de diâmetro, com um navio estacionário do tipo Floating, Storage and Regasification Unit (FSRU, na sigla em inglês), em um píer tipo ilha, com capacidade de processamento de até 20 milhões/dia de gás; e quatro quilômetros terrestre com tubulação de 20” de diâmetro; a Estação de Medição e Regulação de Pressão; e a Linha de Transmissão, em 345 kV, com 92,5 quilômetros atravessando os municípios: Peruíbe, Itanhaém, Mongaguá, Praia Grande, São Vicente, Cubatão. O projetado Gasoduto de Distribuição, com 81,5 quilômetros percorrerá os mesmos seis municípios, com um traçado utilizando faixas de domínio das rodovias Rio-Santos (BR 101) e Padre Manoel da Nóbrega (SP-055).
Está previsto a captação de água do mar, por meio de uma adutora, cuja tomada d’água estará a cerca de quatro quilômetros da linha de costa, e com vazão de consumo prevista em cerca de 3.400 t/h, sendo 3.300 t/h para as torres de resfriamento e 100 t/h para geração de água desmineralizada e água clarificada. A água de refrigeração do sistema retorna ao mar mais quente do que entrou. Daí interferindo drasticamente na cadeia alimentar dos peixes, crustáceos, frutos do mar em geral.
Como sempre, de práxis, a empresa garante que não haverá grandes impactos a população e ao meio ambiente, pois trabalha segundo “o padrão mais moderno do mundo, com alta eficiência e baixa emissões”. Difícil acreditar quando se analisa os estudos e relatórios de impactos ambientais feitos sobre encomenda dos empreendedores. Neste caso a empresa que fez os estudos ambientais (EIA/RIMA), a Tetra Tech Engenharia e Consultoria Ltda, não levou em conta os efeitos cumulativos negativos de mais uma unidade industrial, no território e circunvizinhança.
O maior impacto ambiental produzido por termoelétricas são os gases emitidos, muitos deles de efeito estufa. São também produzidos óxidos e dióxidos de enxofre, óxidos de nitrogênio, monóxido e dióxido de carbono, outros gases e particulados. Também existe a geração de hidrocarbonetos. Os óxidos de nitrogênio são formadores de ozônio de baixa altitude, prejudiciais à saúde. A poluição causa problemas respiratórios, como infecções dos brônquios e doenças pulmonares. Essas informações são de suma importância quando relacionadas a estudos das áreas médicas, que têm revelado que o óxido nítrico (NO) está na base de diversas patologias humanas, tais como impotência masculina, diabetes, supressão da imunidade, hipertensão, câncer, processos alérgicos e inflamatórios e problemas cardíacos, entre outros.
Os gases produzidos são vários, muitos deles com emissão amplamente combatida atualmente como o dióxido e monóxido de carbono. Segundo a Agência Internacional de Energia (1994) para cada tonelada equivalente de petróleo (tep) de gás natural consumido são produzidos 2,12 t CO2. Com um consumo previsto de oito a nove milhões de m3/dia de gás, esta usina despejará na atmosfera diariamente ao menos oito mil toneladas de CO2 (240 mil toneladas /mês, aproximadamente três milhões toneladas/ano), além de outros gases extremamente danosos a saúde humana.
Destruição ambiental, com a supressão de vegetação, de um bioma já tão devastado como é a Mata Atlântica, dragagem e intervenções no mar, sem dúvida influenciará negativamente os modos de vida das populações tradicionais, populações indígenas, moradores locais. A segurança alimentar destas populações estará sujeita a grande risco, visto que as atividades da pesca artesanal será diminuída sensivelmente. Outros empreendimentos desta natureza, já instalados no país, atestam esta afirmativa
O aspecto econômico também deve ser levado em conta, visto que o custo da energia elétrica é influenciado pelo custo do combustível, do transporte e pelo processo de conversão do gás. A imprevisibilidade do mercado internacional refletirá no preço da energia produzida, já que o GNL será importado. Logo a conta de energia ficará ainda mais cara ainda para o consumidor. Esta situação refletirá para as cadeias produtivas que tem a energia elétrico como principal insumo.
Existem questões técnicas que ainda devem ser discutidas e estudadas antes da concessão das licenças. Todavia, conhecendo o grau de subordinação da CETESB às determinações do governo, tais cuidados necessários e imprescindíveis não serão tomados. Daí a mobilização popular ser essencial para barrar essa tentativa de instalar um parque industrial para produção de energia totalmente desnecessário.
Como é apregoado, tornar São Paulo autossuficiente de energia elétrica, quando o sistema nacional é interligado. Produzir empregos temporários e de baixa qualidade, colocando em risco a saúde da população. Devastar mais ainda a Mata Atlântica, destruindo vidas de populações tradicionais e pobres que moram vizinhos ao empreendimento, não justifica o alto preço social, ambiental e econômico provocado, caso este empreendimento seja realizado.
O litoral sul paulista, e sua população, já passou por outras tentativas de instalação de projetos despóticos, como o das usinas nucleares em plena ditadura militar, e o do empresário/presidiário Eike Batista. Com certeza rechaçará mais esta sandice.
*Heitor Scalambrini Costa é professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco