Allan Titonelli Nunes *
“O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça,
mas para julgar segundo as leis.”
(Platão)
A partir da ação penal 470, popularmente conhecida como o processo do mensalão, iniciou-se um grande interesse da população brasileira pelo Direito, campo do saber muito técnico e que até então se resumia a debates entre advogados. Hoje já se observa, com certa frequência, precipuamente após os desdobramentos do que se denominou Operação Lava Jato, a discussão em bares e outros lugares de encontro sobre o cabimento dos embargos infringentes, do habeas corpus, a prescrição da pretensão punitiva, ato de ofício, corrupção ativa e passiva, entre outros institutos do Direito processual e material. A mais recente celeuma refere-se ao decreto de indulto natalino editado pelo presidente Michel Temer em 2017, que está sendo apreciado pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5874/2017.
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Podemos dizer que esse debate passou a fazer parte da cultura popular brasileira, havendo, inclusive, classificação de “golpista”, “antidemocrático”, “usurpador”, “partidário”, “leniente” etc, a depender do voto proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal. É inegável, do mesmo modo, que a universalização do acesso ao Poder Judiciário trouxe novos contornos para a sociedade – a explosão de demandas nos Juizados Especiais demonstra muito bem essa realidade, comprovando que a intervenção do direito nas realidades sociais é plena e atual.
PublicidadeTodavia, o resultado desse interesse pelo direito decorre também, em certo aspecto, pelo discurso protagonizado pelos magistrados, o qual tem contribuído para uma preeminência do Judiciário em relação aos Poderes Executivo e Legislativo. Vive-se um momento em que o Poder Judiciário interfere em quase todas as políticas públicas executadas, fenômeno conhecido como “ativismo judicial”, usurpando funções, ora do Executivo ora do Legislativo, quando deveria estar adstrito à prestação da tutela jurisdicional, a qual é sua função precípua.
Esse fenômeno é relatado por Luiz Werneck Vianna, em seu livro A judicialização da política e das relações sociais no Brasil [1], como resultado do acionamento do Poder Judiciário para resolução das demandas sociais e das decisões políticas emanadas pelo Executivo e Legislativo. Nos dias de hoje grande parte das decisões políticas dos Poderes Executivo e Legislativo estão sendo confrontadas ou questionadas por meio de ações judiciais – tendo, assim, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, ganhado holofotes mais reluzentes, em face de ser o último órgão jurisdicional a decidir.
De outro lado, o Judiciário é o único dos Poderes que não passa pelo crivo popular, todavia na medida em que invade as competências dos outros Poderes traz para si um grau de responsabilidade e necessidade de legitimidade de suas decisões, o que pode ser perigoso para o Estado Democrático de Direito, pois o povo muitas vezes é passional e influenciável.
Afinal, o que seria ouvir a opinião pública, cuja maioria muda de opinião conforme a “onda do momento”? Até porque, se for o caso de julgar conforme as “vozes da rua”, bastaria contratar um bom instituto de pesquisa e esquecer qual papel cabe ao Supremo.
Montesquieu, inclusive, ao descrever sua teoria sobre a tripartição dos Poderes no livro Do espírito das leis [2], já alertava sobre a possibilidade de, em determinada época, haver a prevalência de um Poder em relação aos demais. Os freios e contrapesos seriam a forma de manter a independência e harmonia entre eles, combatendo os abusos eventualmente praticados.
Muitas vezes o ordenamento jurídico é expresso e não comporta outras interpretações, muito embora as leis sejam estáticas e a sociedade seja dinâmica, exigindo do julgador a adequação aos fins sociais a que a norma se dirige. Sob pena de fechar os olhos à evolução social.
Enfim, conforme professava Platão, “o juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo as leis”. E esse julgamento deve ser respeitado na forma expressada por Aristóteles (“A base da sociedade é a justiça; o julgamento constitui a ordem da sociedade: ora, o julgamento é a aplicação da justiça”), o que não exime a decisão de possíveis críticas, mas dá uma diretriz para que o Legislativo altere o ordenamento – visando, assim, adequá-la à vontade popular, quando for o caso.
* Procurador da Fazenda Nacional, é especialista em Administração Pública pela FGV e em Direito Tributário pela Unisul. Ex-presidente do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz, é membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
[1] VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
[2] MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis – in Coleção Os Pensadores – Montesquieu. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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