Elizabeth Veloso *
Mais de 100 ciclistas participaram, no último dia 18, de homenagem ao Dia Nacional do Ciclista. A data marca a morte do ciclista Pedro Davison, atropelado no Eixão por um motorista embriagado que fugiu do local, e a luta da sua família contra a impunidade. O contabilista Leonardo Luiz da Costa foi condenado a seis anos de prisão em regime semiaberto em 2010, quatro anos após o acidente, mas recorre da sentença em liberdade. De acordo com as estatísticas do governo do Distrito Federal, 639 ciclistas morreram como Pedro, entre junho de 2000 e junho deste ano, no DF. No encerramento do ato, prestei uma homenagem à família lendo o seguinte texto:
Quando o Jonas, presidente da Rodas da Paz, me pediu para prestar uma homenagem aos ciclistas no passeio de hoje, eu tremi.
O que falar para os pais diante da morte de um filho?
Mas então eu pensei na minha história, e disse: “sim, talvez eu seja a pessoa certa, no lugar certo”. De novo.
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Há dez anos isso aconteceu e hoje temos a Rodas da Paz.
Eu acabei de ver a morte.
Ela se alojou aqui no meu peito. Escondeu-se muito bem.
Foi difícil descobri-la. E foi difícil lutar contra ela.
Juro, houve momentos em que eu quis desistir.
É um comportamento clássico para pacientes de câncer.
O sentimento de finitude chega por inteiro.
Eu não perdi a vida, mas perdi a confiança.
Beth Davison e Pérsio Davison, a quem homenageamos hoje simbolizando todos os ciclistas, perderam a vida.
Mas não perderam a confiança.
Um filho é como se fosse a nossa própria vida.
A vida só não acaba quando a gente tem amor.
E, quando esse amor é grande, ele se perpetua, mesmo à distância.
Multiplica-se em cada um de nós, que nos sentimos amados e cuidados pela querida e eterna vice-presidente Beth e pelo conselheiro-mor da Rodas da Paz, Pérsio.
Esse amor se materializa numa doação constante, numa diretiva de vida pautada pela fé inabalável e na capacidade de duas pessoas de jamais desistirem.
Lidar com a perda é a construção de uma nova vida, disse uma mãe que perdeu dois filhos no acidente da TAM em Congonhas.
Eu ajudei a criar a Rodas da Paz, pelo meu filho, Enzo, para que ele tivesse um pai ao seu lado. Eu não sou ciclista.
Vocês, Beth e Pérsio, plantaram e regaram flores no terreno árido da convivência pacífica no trânsito, e vocês também não são ciclistas de carteirinha.
Também o fizeram por seu filho, Pedro. Por amor.
Eu acho que o segredo dessa campanha, a receita do sucesso, a nossa força é o amor. Corporificado nas pessoas que a gente ama. E as mães são as nossas guias.
É por elas que estamos aqui, para que a violência não subverta a ordem natural das coisas: primeiro vão os pais, depois os filhos.
Se alguma coisa dá errado, a gente ainda pode fazer o certo!
A gente ainda pode viver da saudade, e não do sofrimento.
A gente ainda pode trazer ao mundo um pouco mais de alegria, ainda que com algumas gotas de tristeza.
A gente ainda pode ensinar civilidade, contaminar as multidões e ser o porta-voz da esperança.
Somente as pessoas especiais conseguem fazer isso no momento de maior provação.
Elas são especiais.
Mas eu sempre disse:
A vida nos tira com uma mão, e nos dá com outra.
O budismo tem uma frase: “Nós somos o que nós pensamos. E o mundo é o que você pensa”.
Beth e Pérsio, em nome de todos os ciclistas, de todas mães, de todos os amores incondicionais, obrigada por nos oferecer o mundo lindo que existe dentro de vocês.
Um mundo que nunca vai morrer dentro de nós.
* Fundadora e primeira presidente da ONG Rodas da Paz.