Raphael Junqueira *
O mercado de aplicativos para tablets e smartphones está aquecido. Diariamente centenas desses aplicativos são lançados ou melhorados e posteriormente disponibilizados para aquisição ou atualização através das lojas virtuais.
Desde o início de 2014 circulam pela internet notícias sobre o lançamento de aplicativos voltados a facilitar a locomoção do cidadão por meio de caronas. Segundo reportagem recente, publicada pelo Jornal de Brasília em 14 de fevereiro, os aplicativos oferecem diversos recursos, entre os quais selecionar o motorista e o modo de pagamento.
Mas não é tão simples assim. Existem atividades que só podem ser exercidas mediante autorização prévia por parte do Estado – e o transporte de pessoas é uma delas. É uma determinação da Constituição Federal e repetida nas constituições estaduais, em respeito ao princípio da simetria.
Diz a Constituição Federal, em seu artigo 21, que:
“Compete à União:
…
XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
…
d) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros”
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Mais a frente, a mesma Constituição diz, em seu artigo 175, que:
“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.”
Nota-se, com isso, que o Estado avocou para si o dever de prestar tais serviços e regular a atividade. Independentemente da oferta e da qualidade dos atuais serviços públicos, ninguém pode simplesmente realizar o transporte remunerado de pessoas – passageiros – sem obedecer aos critérios legais.
No âmbito da União, a Lei nº 10.233/01 atribui à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a obrigação de regular o setor de transporte interestadual ou internacional de passageiros por via terrestre.
E, de acordo com a Resolução ANTT nº 233/2003, realizar o transporte interestadual ou internacional de passageiros sem prévia autorização ou permissão caracteriza infração punível com multa – atualmente acima de R$ 5 mil –, sem prejuízo das demais sanções penais e administrativas cabíveis.
Analisando a situação sob o ponto de vista penal, poderá haver enquadramento pela Lei de Contravenções Penais – exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício. É o que diz o artigo 47 desta lei.
Ainda, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, para que o condutor exerça atividade remunerada ao volante é necessária a realização de cursos e exames de saúde específicos. É o que dizem o artigo 147 e seus parágrafos.
A sociedade deve compreender que o conceito da denominada carona solidária difere da atividade predatória que vem sendo realizada diariamente por diversos motoristas que retiram passageiros do transporte público mediante remuneração ou qualquer outra vantagem.
Na realização da denominada carona solidária não poderá haver qualquer cobrança ou recebimento de vantagem. Ou seja, carona solidária é o ato de transportar pessoa sem auferir qualquer vantagem. Uma mera divisão nos custos de combustível já extingue a solidariedade da carona.
Assim diz o artigo 736 do Código Civil: “não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia”. Em seguida complementa dizendo que “não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas”.
Há de ser compreendido também que esta modalidade de serviço, prestado clandestinamente, ou seja, sem preencher os requisitos legais, termina afetando sobremaneira a atividade e a economia daqueles que executam legalmente tal atividade.
Quem executa legalmente essa atividade cumpre as determinações impostas pelo Poder Público, de modo a oferecer menos riscos aos usuários do sistema, uma vez que os veículos são vistoriados freqüentemente, há cobertura de seguro de responsabilidade civil, entre outras obrigações.
Não é meramente verificar o histórico de pontuação do condutor ou os antecedentes criminais que o usuário do serviço estará seguro. Os critérios de fiscalização são complexos e vão muito além destas medidas, chegando a ponto, por exemplo, de verificar a jornada de trabalho e locais de descanso do motorista.
É muito cômodo para um motorista auferir vantagem em seu veículo particular ao se deslocar para o trabalho, escola ou viagem sem recolher os devidos tributos ou se submeter aos rigorosos testes e exames periódicos.
Enquanto isto o prestador regular, por exemplo, uma empresa de transporte coletivo urbano, há de manter toda uma estrutura de frota, garagem, quadro de funcionários, freqüência de prestação do serviço – ainda que naquele horário ou dia a demanda seja baixa –, recolhimento de tributos, contratação de seguro, etc.
Não é ateando fogo em veículos de transporte público que a sociedade irá receber o retorno esperado – no caso a melhoria do sistema de transporte. O retorno haverá quando as leis brasileiras forem eficazes, a ponto de o administrador público intervir e, se necessário, substituir em tempo hábil o prestador de serviço que não esteja cumprindo com a sua obrigação.
E para isso a sociedade deve fazer sua parte, ou seja, viver com moralidade, começando por não usar ou incentivar o uso de práticas ilegais – como a do transporte clandestino. Deve também aprender a votar para exigir dos seus candidatos uma reforma do sistema jurídico brasileiro, de modo que a aplicação e execução das leis e ordens judiciais sejam eficazes.
* Raphael Junqueira é bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Penal e servidor da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Contato: raphaelfjd@terra.com.br