Faz tempo. Mas o Exército de Caxias já foi legalista e, ao contrário dos dias atuais, pegou em armas não para sabotar a vitória de um presidente legalmente eleito, como o Lula de 2022, mas, ao contrário, para garantir a posse do mais votado e preservar a democracia. Uma tentativa frustrada de golpe ocorreu há 68 anos, precisamente no dia 11 de novembro de 1955, que ficou conhecida como “A novembrada”, data que pode ser comparada ao fatídico 8 de janeiro de 2023.
As urnas da eleição disputada menos de um mês antes haviam dado a vitória a um médico de Diamantina, um certo Juscelino Kubitscheck, candidato do velho PSD. Juscelino obteve 36% dos votos, contra 30,2% de Juarez Távora, da UDN (uma espécie de PL da época). O restante da votação dividiu-se entre Adhemar de Barros (PSP), com 26% e o integralista Plínio Salgado (PRP), que obteve apenas 8% do total.
A oposição liderada pelos conservadores da UDN e alguns dissidentes das outras legendas não se conformou com o resultado e, acusando Juscelino de comunista, intentou um golpe alegando que, por não ter obtido maioria absoluta de votos, JK não podia tomar posse. Só que na legislação não havia nada sobre maioria absoluta. Como atualmente não há nada sobre a obrigação de “votos auditáveis”, no papel, como alegaram Bolsonaro e seus comparsas, para por em dúvida a lisura da votação eletrônica. A legislação eleitoral de 1955 previa apenas que seria eleito o mais votado e ponto final. Diferente de hoje quando, se nenhum candidato obtiver a maioria absoluta, é realizado um segundo turno com os dois mais votados. Como aconteceu entre Bolsonaro e Lula.
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Lott, a espada democrática
Pois bem. Foi aí que naquela época um grupo de militares legalistas – sim, eles já existiram, pode acreditar! – enfrentou os golpistas e garantiu a posse de Juscelino. Naquele tempo, como hoje, já existia a praga das fake news. Só que naquele tempo, pré-internet, elas eram distribuídas através de panfletos apócrifos, de porta em porta, ou jogadas na frente das próprias seções eleitorais, no dia do pleito. E foram usadas a rodo para atacar JK.
Tudo isso é contado bem direitinho e com lances emocionantes no atualíssimo livro Lott, a espada democrática & outros escritos pacifistas, de autoria de Pedro Rogério Moreira, jornalista e escritor tarimbado, ex-correspondente da Rede Globo na Amazônia, entre outras importantes funções na imprensa. O próprio Pedro Rogério afirma que “essa recorrência de golpes de Estado no Brasil é antiga, as fake news também são uma coisa antiga. Sempre os perdedores apelam para a mentira”. Um detalhe que torna o livro ainda mais interessante é que, além de outras fontes, Pedro Rogério utilizou como base algumas preciosidades que vinha guardando no baú das memórias, entre as quais uma entrevista inédita que fez com o próprio Lott.
Ao contrário de hoje, os militares liderados pelo Marechal Teixeira Lott pegaram em armas para garantir a posse de JK e brecaram um intentado golpe militar, embora a semente maligna permanecesse viva – como continua até hoje – e vingaria nove anos depois, com a quartelada que depôs João Goulart e impôs 21 anos de ditadura no país. O Marechal Teixeira Lott seria um dos últimos com essa patente em tempos de paz se Bolsonaro, de uma canetada, não tivesse elevado ao cargo de marechal figuras que hoje ocupam as páginas do noticiário na condição de organizadores do malfadado golpe do 8 de janeiro como os generais Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, Eduardo Villas Bôas e Sérgio Etchegoyen.
É preciso extirpar o golpismo dos quartéis
Diversos estudiosos acreditam que há muito tempo as escolas militares já deviam ter passado por algum tipo de revisão capaz de extirpar o tumor maligno do golpismo que volta e meia irrompe, como ocorreu no 8 de janeiro. É mais que necessário que a interpretação canhestra do artigo 142 do texto constitucional, referendado oportunisticamente por juristas como Ives Gandra Martins, de que forças armadas exerceriam um tal de “poder moderador”, seja definitivamente anulada. E as forças armadas voltem a atuar, como nos tempos de Lott, como guardiãs, e não como demolidoras da democracia. Ora, poder moderador existiu no Brasil império, idealizado pelo francês Benjamin Constant.
Ele estaria acima dos demais poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário. Foi exercido no Brasil pelos imperadores Pedro I e Pedro II. E extinto com a Proclamação da República. Portanto, em nenhum momento, ao longo da história, foram atribuídas às forças armadas as prerrogativas do poder moderador. Mas ainda hoje essa falácia é brandida sempre que é necessário justificar a intervenção golpista das forças armadas no processo democrático. Foi o que aconteceu agora, quando os golpistas, com base na interpretação enviesada do artigo 142, forçaram a barra para impor a tese de que atos do STF e da Justiça Eleitoral teriam prejudicado a lisura do pleito.
Os militares envolvidos na trama que culminou no 8 de janeiro estão sendo investigados e é grande a chance de serem punidos. Mas de nada adianta derrubar o príncipe e deixar que permaneça o princípio. É preciso extirpar definitivamente dos quartéis a doutrina perniciosa do golpismo, ensinando-se aos jovens militares, desde seu ingresso, que as forças armadas existem para proteger o país dentro da democracia, e não através do sacrifício das instituições democráticas pela imposição de regimes de força.
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