Ela é socióloga, marxista, ecossocialista e uma das figuras mais ativas da internet no campo das ciências sociais. Em suas redes, propõe reflexões didáticas e aprofundadas. De vez em quando, protagoniza também algumas “pistolagens” sobre a esquerda brasileira, como ela mesma diz (porque, se depender da professora e pesquisadora, vai ter autocrítica na esquerda, sim).
Sabrina Fernandes reúne 110 mil seguidores no Instagram, 75 mil no Twitter e 160 mil em seu canal no Youtube, o Tese Onze. Nos seis vídeos de maior audiência da plataforma, mais de 1 milhão de visualizações. Eles contam, por exemplo, os fundamentos do antipetismo, verdades sobre Karl Marx e análises em torno de uma “contradição inconciliável”, pelo menos no senso comum dos liberais: pode socialista de iphone?
Spoiler rápido: pode!
Nos próximos meses, Sabrina vai se dividir entre o ativismo educacional nas redes e as sessões de autógrafos em um seu “tijolão” – ela brinca – de mais de 400 páginas.
Está chegando às prateleiras da Sociologia Política o livro Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira. A obra já se encontra em pré-venda no site da editora, a Autonomia Literária.
Leia também
Na capa, o título principal vem em letras embaralhadas. É de propósito. Referência direta ao quadro um tanto quanto caótico vivido pelas forças de esquerda no Brasil.
O trabalho não é “apenas” de diagnóstico. É também de ação para mudança. Uma marca da ativista, que nas eleições de 2018, por exemplo, não se furtou em participar de panfletagens e de conversas de rua com eleitores. Inclusive (e principalmente) com os indecisos e com aqueles já tendendo ao campo da direita.
“É um livro bastante denso, mas também com muita pedagogia, muita didática. A ideia é que as pessoas o vejam como uma forma de entrar no debate sobre o que seria essa esquerda dividida, o que seria uma esquerda unida e a problematização sobre essa ‘unidade de esquerda’. Que, na verdade, não seria bem uma unidade. Seria a tentativa de um monopólio, que barra a crítica, que barra as alternativas e as possibilidades que nós poderíamos estar construindo”, confronta de saída a autora.
Nesta entrevista exclusiva, Sabrina Fernandes fala sobre os desafios e contradições no campo da esquerda, e conta das estratégias para a (re)conquista não apenas da classe trabalhadora, como também de pessoas que nos últimos anos firmaram laços com alas mais conservadoras da sociedade.
Sobre o início errático do governo de Bolsonaro, cheio de idas, vindas, constrangimentos públicos e “bate-cabeças”, a socióloga adverte os esquerdistas quanto às ciladas e tentações de um revanchismo fácil: o “eu avisei” e o “bem feito” não vão funcionar para politizar o debate e trazer de volta quem atravessou para a margem direita. Confira:
Sabrina, por que Sintomas mórbidos?
O nome do livro Sintomas mórbidos – a encruzilhada da esquerda brasileira surge a partir de uma alegoria que é feita de uma citação de Antonio Gramsci, em que ele fala que “o velho está morrendo e o novo não está pronto para nascer, e nesse interregno, sintomas mórbidos aparecem”. Esses sintomas mórbidos servem de alegoria para que eu explique vários sintomas relacionados à crise da esquerda brasileira, de uma forma que pode, inclusive, ser extrapolada, para falar da esquerda em outros lugares do mundo.
Qual é o ponto de partida do livro?
O livro surgiu a partir da pesquisa que eu fiz durante o meu doutorado com a esquerda brasileira. Foram mais de dois anos de pesquisa de campo, participando de atos, de reuniões e de diferentes formas organizativas. A partir disso, com entrevistas e etnografias, eu fiz a minha tese de doutorado. Mas o livro não é a tese. Eu tinha uma preocupação muito forte em não simplesmente publicar a tese em formato de livro, mas que a obra tivesse uma outra linguagem, outras metáforas, que ficasse mais atualizada. Acredito que o livro é muito melhor do que a tese.
A fragmentação da esquerda brasileira é mostrada como fenômeno complexo. Isso já está na capa do livro: uma tipografia mais bagunçada, mais confusa, justamente pra mostrar como essa fragmentação não é apenas um caso de simples desunião. Que as organizações não conversam entre si, ou que têm propósitos diferentes, e deveriam ser mais unidas. Eu vou “complicar’ inclusive no livro a ideia de o que seria uma união das esquerdas, e a partir disso, eu também faço uma análise em relação à conjuntura, que é de despolitização, e de como essa despolitização é um desafio que precisa ser superado, para que essa fragmentação também seja resolvida.
Tem se tornado comum hoje em dia vermos cidadãos não explicitamente favoráveis a nenhum dos dois pólos (esquerda ou direita) enxergando os dois campos como iguais, diante da aproximação de ambos em radicalismos, manifestações hostis e em flertes com a despolitização. O que nos levou a essa situação? É possível sair dela no curto prazo?
Eu considero que é bastante problemático essa forma com que as pessoas tratam os extremos como iguais, até mesmo confundindo o que seriam esses tais extremos. É uma visão muito simplista de como as ideologias funcionam. Desconhece como existem inclusive contradições dentro desses campos.
A tal extrema-esquerda – a esquerda radical, revolucionária – é, na verdade, muito diferente da direita, porque são projetos políticos diferentes. Por parcialidade na historiografia ou também por uma manipulação midiática, as pessoas acabam fazendo essa equalização, que é errônea, e elas sim acabam flertando com a despolitização a partir disso.
Tem a ver com a conjuntura da ultra-política, que eu explico no livro como uma forma de falsa polarização, em que esses dois extremos são colocados como únicas opções, uma inimiga da outra, e a partir daí não se debate o que realmente está dentro dos projetos ideológicos.
A primeira coisa que a gente tem que fazer é começar a desmitificar o que são esses processos. Esses significados torpes que têm sido propagados precisam, sim, ser desconstruídos. Nós precisamos trazer os significados autênticos, e demonstrar que esquerda e direita não são simplesmente uma questão de escolha ideológica. Esquerda e direita são campos que interagem politicamente de forma diferente com as estruturas que são dadas, como a estrutura do capitalismo, as estruturas coloniais que permanecem na nossa sociedade, as estruturas racistas, estruturas patriarcais e assim por diante.
Na sua percepção, que componentes principais explicam a demonização da esquerda – sobretudo nos processos eleitorais de 2016 e 2018 – e por que esse quadro parece persistir, mesmo com questões antipopulares sendo discutidas no plano federal?
Essa demonização da esquerda, eu passo bastante tempo discutindo no livro, justamente porque o anti-esquerdismo é um desses sintomas mórbidos com os quais a gente está lidando. Ele fica muito óbvio no momento dos processos eleitorais, como em 2016 e em 2018, já estava presente em 2014, mas ele também faz parte do vocabulário e da forma de compreensão da realidade do dia-a-dia das pessoas.
As pessoas foram levadas a crer que, por exemplo, a corrupção é um problema de esquerda. Que os problemas da crise econômica são problemas de esquerda. E assim acabam também esquecendo ou são levadas a esquecer de todos os processos de dificuldade econômica e de problemas de corrupção que nós tivemos no Brasil durante os vários governos que não foram de esquerda. São levados a entender que o problema da realidade é o problema de um partido específico, ou de um grupo de partidos, e não parte de um sistema muito específico no Brasil, que tem a ver com o capitalismo dependente.
Veja o vídeo em que Sabrina defende esse conceito:
Vejamos, por exemplo, a tomada de medidas antipopulares pelo governo federal, e que, mesmo assim, o povo tende a associar tais problemas como sendo do PT. Isso faz parte de uma construção ideológica, presente no debate da ultra-política.
Veja o vídeo em que Sabrina e Debora Baldin explicam o termo:
O governo Bolsonaro foi eleito praticando ultra-política. E é por isso que eu creio ser muito importante demonstrar para as pessoas o que seriam esses processos de despolitização, e como eles são manipulados. Por isso eu discuto os conceitos de ultra-política e da pós-política, como duas formas de despolitização muito presentes na nossa conjuntura.
Ainda em referência a pautas antipopulares, por que é tão difícil mobilizar a sociedade, especialmente a classe trabalhadora, para as lutas “de chão” (como grandes manifestações de rua, greves gerais etc)?
Justamente porque nós passamos por um processo de desmobilização. Assim que o Lula assumiu e nós continuamos fazendo mobilizações que já aconteciam no Brasil há um bom tempo, era colocado que se mobilizar demais poderia desestabilizar o governo, colocar a direita de volta, e que isso seria muito pior. Houve um apaziguamento de lutas, que também passa por vários outros processos, como cooptação de lideranças, acordos de vanguarda e assim por diante. Isso somado ao fato de que a esquerda perdeu a credibilidade e a confiança da base, justamente por ter tomado esse trabalho de base como “um pouco desnecessário, agora que chegamos à institucionalidade”. Foi criando um distanciamento.
A partir disso, a direita, inclusive em processos como o da igreja evangélica no Brasil, foi tomando esse espaço, foi cooptando a base, e hoje nós temos um racha entre a consciência geral dessa classe trabalhadora que deveria estar alinhada com a esquerda, de acordo com os seus interesses autênticos, e em como a esquerda deveria estar lidando. Não basta fazer, por exemplo, uma mera convocatória para uma greve geral. É preciso construir uma greve geral de baixo para cima. E aí, a gente vai passar por uma dificuldade, que está relacionada a essa crise da esquerda.
Ainda nesse contexto de crise, em um de seus vídeos mais recentes, você coloca na berlinda o problema da coerência (ou da falta dela) entre pessoas que se dizem de esquerda. O vídeo problematiza o fato de gente desse campo ter festejado o ambiente hostil imposto a jornalistas que cobriam a posse de Bolsonaro, já que esses críticos viam os profissionais de imprensa como “da mídia golpista”. Quais os caminhos para que a esquerda não entre nessa espiral de ódio e acabe se desumanizando, em uma conjuntura tão árida como a atual?
Acredito que é muito importante que a esquerda brasileira, que as pessoas que se identificam como de esquerda, saibam separar o que é aquela classe que produz um certo consenso conservador (anti-esquerdista e contraditório para a classe trabalhadora), da classe trabalhadora que foi orientada a absorver esse consenso através de processos de despolitização. Os nossos inimigos não são a classe trabalhadora que hoje reproduz um senso comum conservador.
Os nossos inimigos não são nem a classe média, levada a crer que é burguesia ou que pode ser burguesia amanhã, quando de fato quem manda neste país é a classe dominante. Devemos lembrar exatamente do que ocorre nesse processo. É a gente colocar quem é o trabalhador nessa estrutura e quem é o dono do aparato de comunicação midiático, burguês, que tem muito dinheiro envolvido nesse país.
Se a gente parar para ficar hostilizando, por exemplo, aquele jornalista da Globo, que está somente fazendo o seu trabalho – de uma forma nem muito interessada em defender uma posição política ou outra – e confundir com os donos da Globo, os grandes acionistas, que inclusive ganham muito em cima de especulação financeira, a gente vai ter um problema muito sério na hora de estar reconquistando a confiança da classe trabalhadora e dessas classes medianas, que podem até mesmo se identificar como pequena burguesia, mas seria muito melhor que a gente tivesse essas classes do nosso lado. Até porque nós devemos fazer um debate de luta de classes no Brasil, da estrutura desse capitalismo dependente, de uma estrutura que reproduz a desigualdade, que joga as classes que estão embaixo uma contra a outra, justamente para nos distrair do fato de que a elite política e a elite burguesa, a elite econômica no Brasil, se relacionam muito bem.
Em vez de estar brigando aqui embaixo, nós devemos expor quais os interesses de classe que existem na nossa sociedade hoje. Não vai ser com um simples discurso de “eu avisei”, de “bem feito”, que isso vai funcionar. É preciso que a gente se engaje em formas de politização mais concretas, formas de solidariedade, de trabalhar junto, de estar desmitificando vários desses conceitos, termos e ideias na cabeça das pessoas, para que a gente possa conquistá-las.
Então não vai ser simplesmente colocando-as do lado de lá e equalizando o eleitor de Bolsonaro com o Bolsonaro. Nem todo eleitor de Bolsonaro possui, na sua visão similar à do Bolsonaro, o interesse real naquilo dali. Às vezes, é contraditório, e nós precisamos separar essas pessoas: as que são levadas a crer que têm os mesmos interesses de Bolsonaro, daquelas que de fato os fatos têm em comum com o presidente. Precisamos separar isso, ou senão continuaremos jogando a classe trabalhadora para cima da direita: uma direita populista e, nesse momento, uma extrema-direita no Brasil.
Socióloga de formação, como você analisa a recente manifestação do presidente Jair Bolsonaro, colocando os cursos de Filosofia e de Sociologia como carreiras que, na cabeça dele, dão menos “retorno imediato ao contribuinte” do que outras, como medicina, veterinária e engenharia?
Existem vários elementos associados a essa afirmação do Bolsonaro, que, inclusive, não é nova, não é algo exclusivo da extrema-direita, da direita que faz o discurso do “Escola Sem Partido”.
A Filosofia e a Sociologia são disciplinas que há muito tempo no Brasil são jogadas para escanteio, como se não fossem absolutamente necessárias, como se fosse simplesmente um luxo você ter tempo para estudar Filosofia ou Sociologia. Isso tudo tem a ver com várias linhas de pensamento a respeito da educação no Brasil. Uma delas é de que existe um tipo de conhecimento que é necessário para se obter emprego, e existe um que “não é necessário”, que “não tem utilidade alguma” e que portanto “a gente deve jogar esse conhecimento de lado”.
Isso nega, por exemplo, como a Sociologia e a Filosofia estão relacionadas não somente à capacidades políticas, capacidades de se compreender a realidade, mas nos fundamentos de várias outras ciências. Então, o debate, por exemplo, da Filosofia, é muito importante para a gente compreender o que é método científico, como que a ciência se estabelece no Brasil, e que isso não possa ser simplesmente jogado de lado a partir de uma visão meramente utilitarista de mercado.
Outro elemento é que se supõe que a Filosofia e a Sociologia são disciplinas de esquerda, de esquerdistas, e que poderiam ser usadas para manipular os alunos, de acordo com os interesses dos partidos de esquerda. O “escola sem partido” alega isso, que seriam disciplinas doutrinadoras. Aí, temos duas questões. Uma delas é o fato de que Filosofia e Sociologia são extremamente diversas. Há vários debates que ocorrem com bastante cuidado, com bastante rigor teórico dentro das duas áreas. Então, não há um monopólio, por exemplo, quando se diz que Sociologia seria meramente “coisa de Marx”. De fato, Marx é um dos pais da Sociologia, mas na Sociologia brasileira hoje em dia a gente vê muito mais influência de Weber, de Bourdieu, de Bauman, de Foucault, do que de Marx, propriamente dito.
Outro equívoco parte justamente da Filosofia e da Sociologia, porque muitas vezes dentro das universidades coloca-se que é necessário apenas passar o conteúdo do currículo, e não se tem incentivado os alunos a questionarem e buscarem a aplicação dos debates na prática. Então, não há esse perigo que se coloca em relação à Filosofia e à Sociologia no Brasil, porque as duas áreas no Brasil também não têm cumprido esse papel de pensamento crítico.
Aí, temos um problema, que eu questionaria: elas deveriam ser disciplinas cada vez mais “perigosas” para quem está no poder tentando manipular, e tentando retirar o pensamento crítico. Essa fala do Bolsonaro está totalmente relacionada àquela ideia de que a garotada não deveria estar se preocupando com política, e sim com regra de três, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.
Então, é muito necessário a gente estar sempre relacionando que o que se fala neste governo com relação a isso não é simplesmente uma contra-ideologia, mas um projeto político para que a Filosofia e a Sociologia não sejam ensinadas, para que os estudantes não desenvolvam pensamento crítico a partir disso, e para que, quando sejam ensinadas, sejam cada vez menos “perigosas”, cada vez menos críticas, cada vez mais focadas em explicações meramente formais da nossa realidade.
Cronograma de lançamento de Sintomas mórbidos:
01/06 – São Paulo (SP)
06/06 – Brasília (DF)
08/06 – Rio de Janeiro (RJ)
17/06 – Curitiba (PR)
21/06 – Florianópolis (SC)