A lei do “novo” ensino médio já não pegou da primeira vez e é forte candidata a não pegar da segunda. As razões são várias; a principal é a falta de aderência das propostas contidas na lei com a realidade e, consequentemente, com a viabilidade. Este artigo examina algumas questões aparentemente periféricas, mas que nos permitem refletir sobre distorções criadas pelo processo legislativo.
A primeira questão se refere à exigência do Art. 36, V, § 2º da referida lei que trata da oferta de opções dos “itinerários formativos” pelas escolas. Nesse artigo 36 lemos que “os sistemas de ensino deverão garantir que todas as escolas de ensino médio ofertem o aprofundamento integral de todas as áreas do conhecimento previstas nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo, organizadas em, no mínimo, 2 (dois) itinerários formativos com ênfases distintas, excetuadas as que oferecerem a formação técnica e profissional.”
A intenção do legislador parece clara – assegurar que pelo menos duas das opções previstas pela legislação cheguem até o aluno. Na forma como a lei é redigida, aparentemente essas opções se referem aos alunos voltados para o ensino médio acadêmico – e não ao ensino profissional.
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E aqui surgem alguns problemas. Primeiro, a ideia de dar opção para os alunos do ensino acadêmico só funciona se os exames (Enem, no caso) forem diferenciados de acordo com as opções do aluno. Como isso não está previsto, qualquer que seja o malabarismo a ser feito pelas escolas ou sistemas de ensino, o que veremos será o ensino atrelado ao que “cair na prova”. O que quer se sejam esses itinerários, eles cairão por água abaixo.
Segundo: a ideia de opção é importante se for uma opção para o aluno. Se o aluno quer algo diferente das duas opções oferecidas a critério da escola, ele ficará sem o direito de optar, frustrando o objetivo maior da legislação. Supondo que a preferência pelos 5 itinerários seja distribuída uniformemente, isso significa que 60% dos alunos ficariam sem chance de exercer sua opção.
Sem dúvida é um avanço em relação ao modelo atual em que não há qualquer opção. Mas isso também pode ser uma ilusão, pois nos leva ao terceiro problema prático que pode inviabilizar a ideia na maioria dos municípios: o requisito de economia de escala para operar escolas, especialmente escolas de ensino médio que requerem mais professores, dada a diversificação, e professores mais especializados, dadas as exigências curriculares mais elevadas para esse nível de ensino. A forma esdrúxula da esdrúxula reforma do ensino médio – com trilhas nitidamente tropicais e muito diferentes do que ocorre no resto do mundo – inviabiliza a obtenção de economias de escala, comprometendo sua melhor intenção –, que seria a de oferecer opções para os alunos.
O desajuste da legislação com a realidade se torna mais óbvio com o segundo exemplo. No parágrafo 8 do mesmo inciso – no artigo 36 – a lei preconiza que “os Estados manterão, na sede de cada um de seus Municípios, pelo menos 1 (uma) escola de sua rede pública com oferta de ensino médio regular no turno noturno, quando houver demanda manifesta e comprovada para matrícula de alunos nesse turno, na forma da regulamentação a ser estabelecida pelo respectivo sistema de ensino”.
Os dados de 2020 do ensino médio noturno informam a existência de 1,2 milhões de alunos nesse turno, de um total de 7,4 milhões de alunos matriculados no ensino médio. Isso significa cerca de 400 mil alunos por série escolar. As taxas de evasão e abandono dos cursos noturnos são ainda maiores do que nos cursos diurnos e a taxa de conclusão, muito menor. A aprendizagem é pífia. E menor ainda é o número desses alunos que vai para o ensino superior – o que seria a razão de ser do ensino médio acadêmico.
Do ponto de vista da economia e das pessoas, é do maior interesse concluir o ensino médio – a diferença de salários de concluintes vs. não concluintes é de aproximadamente 12%. O nível de desemprego também é menor para os concluintes do que para os não concluintes. Portanto, são justificáveis e meritórias as políticas que estimulam a conclusão desse nível de ensino – independentemente de continuarem seus estudos em nível superior. Mas será o ensino médio noturno a melhor solução para essa clientela – especialmente com a nova lei que aumenta a carga horária em níveis estratosféricos?
Vale refletir um pouco com base nos dados da realidade. Eis alguns, a título de exercício. Nas duas últimas décadas o país ampliou a oferta de vagas em todos os níveis, ao mesmo tempo em que a demanda veio caindo dramaticamente. Uma das consequências foi a redução do contingente de jovens de 17 a 30 anos que não concluiu o ensino médio. E esse número tenderá a cair nos próximos anos. Isso significa que a “demanda” pelo ensino noturno por essa grupo será cada vez menor.
Mais: seria o ensino regular noturno uma solução adequada para este contingente de jovens e adultos? E seria adequada – ou mesmo viável – para a maioria dos municípios de baixa população? E mais: quanto menor o município e maior a escolaridade, maior a tendência dos jovens de emigrar em busca de melhores condições de escolarização, trabalho e vida. Basta analisar a demografia dos pequenos municípios para verificar o perfil demográfico – com predominância dos idosos.
O EJA (Educação de Jovens e Adultos) possivelmente é uma forma adequada para os que adquiriram condições e maturidade para aprender de forma independente, mas sua eficácia e abrangência são extremamente limitadas, por razões conhecidas. Ainda assim ele é mais eficiente do que o ensino regular noturno.
Quem sabe haveria soluções mais eficazes e economicamente mais sensatas? Por exemplo, por que não oferecer a esses jovens de 15 a 29 anos fora do ensino regular um ensino em tempo integral contemplando estudo, trabalho e formação profissional, inclusive remuneração? Isso certamente custaria muito menos para a sociedade e traria retornos individuais e coletivos muito maiores.
Não é o objetivo, aqui, delinear um roteiro de soluções. O objetivo é chamar a atenção do legislador para o dano que causam boas intenções legislativas desprovidas de fundamento empírico e espírito prático. Assim como o inferno está cheio de boas intenções, a educação está cheia de leis inócuas e que apenas contribuem para aumentar custos sem contribuir para melhorar a vida das pessoas.
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