O anúncio do corte de 30 porcento dos recursos destinados a todas as universidades federais foi um tapa na cara da inteligência brasileira. Que recebeu este bofetão depois de ouvir que três universidades teriam seus recursos bloqueados por promoverem “balbúrdia”. E isto depois do negocista alçado ao posto de ministro da educação anunciar o corte – referendado por Bolsonaro – nos recursos destinados aos cursos de Filosofia, Sociologia e Ciências Sociais. Três porradas seguidas.
Confesso: ando cansado. Bem que tento mudar de assunto. Pensava tratar nesta semana dos efeitos do crescimento da Inteligência Artificial na qualidade de vida e na invasão da privacidade. Ou da crise na Venezuela. Quem sabe, até analisar as causas da hegemonia da música de péssima extração que anda tocando por aí. Agora há pouco me veio a ideia, advertido pela minha mulher no café da manhã, de falar da péssima influência desses youtubers milionários na formação dos hábitos das novas gerações.
Não dá. É preciso botar água no chope desse povo. Suas atitudes e declarações desastradas – e perigosas – escondem intenções autoritárias, racistas, monetaristas, homofóbicas e irresponsáveis, entre outras. O corte dos recursos das universidades é tão importante que os outros temas podem esperar.
O argumento é imbecil
Só pra rememorar: o argumento em favor do corte da verba para Filosofia, Sociologia – e Ciências Humanas de maneira geral, como o próprio Bolsonaro afirmou -, foi o de que o ensino de tais disciplinas “desrespeita o dinheiro do contribuinte” e que as universidades públicas devem centrar fogo na geração de “habilidades para quem paga imposto”.
Pois, na qualidade de professor universitário, afirmo que tal argumento é utilitarista, inconstitucional, autoritário e desastradamente imbecil.
PublicidadeAposto como o ministro da educação não tem a menor ideia do espírito que norteou a criação dos primeiros centros de reflexão que depois ganhariam o nome de universidades, senão não teria proferido essa imbecilidade. Pois a idéia do “livre pensar” contemplava conteúdos da filosofia de pensadores como Aristóteles e Platão, pilares do pensamento filosófico universal. Aristóteles dava aulas públicas no jardim da casa dele, o Lyceum. Ali, mestre e discípulos cuidavam de entender o homem e o mundo, e não apenas uma profissão. Tratavam da “humanização do homem”, assuntos que provavelmente nem o capitão nem seu ministro saibam do que se trata. O surgimento das universidades na Europa possibilitou a disseminação do pensamento crítico que desaguaria no Renascimento e mais tarde no Iluminismo. Ou seja, a universidade não surgiu utilitarista, ensinando um ofício, um ganha-pão. Foi criada como espaço do pensamento crítico, da liberdade de ideias, da contestação de valores consagrados. Se a “balbúrdia” a que o ministro se refere for isso, então ele que bote a culpa nos gregos. Só depois foi que as universidades, como as conhecemos hoje, começaram a formar profissionais deste ou daquele ofício. Além, naturalmente, de filósofos, sociólogos, cientistas sociais etc.
A mobilização autoritária
Sobre a situação criada com a decisão do corte, ouçamos o ex-reitor da UnB, professor José Geraldo:
“Em toda ação política autoritária logo se instala o horror à crítica e à reflexão, muito fortes no ambiente cultural e na educação. Pense em Goebbels e seu tão forte horror à cultura que lhe dava o desejo de empunhar a pistola. E em Mussolini, ao afirmar em seguida à condenação de Gramsci, que era preciso fazer aquele cérebro parar de pensar por 20 anos. E na funesta procissão das tochas na Alemanha nazista, culminando com a queima de livros de Filosofia, de Sociologia e de Literatura. As ditaduras e o autoritarismo se valem por isso da violência. Contra a palavra, a censura; contra o corpo, a tortura; contra o protagonismo político, o banimento, o exílio e o assassinato político. Entre a ditadura explícita e a mobilização autoritária que a prepara, essa gradação vai se delineando, como estamos assistindo”.
Ressalta das últimas decisões na área do ensino superior, além da imbecilidade intrínseca a todas elas, uma absoluta falta de critério e método, essencial até para impor um projeto autoritário. Condenar Filosofia e Sociologia por não oferecerem habilidades – não resultarem numa profissão, em última instância – é apenas tentar extinguir o pensamento crítico, incômodo em si mesmo por promover a dúvida e celebrar o contraditório. O primeiro anúncio do corte de verbas que atingiu três universidades como a UnB teria sido motivado pelo fato de elas promoverem a “balbúrdia” (o “Aurélio” ensina que “balbúrdia” é vozerio, gritaria, tumulto, ou seja, tudo o que se deseja de uma instituição que abre espaço ao pensamento livre). E também por não atingirem as metas de produção acadêmicas. Obs.: a UnB está entre as mais bem posicionadas nos rankings internacionais.
Inimigos da universidade são inimigos do pensamento crítico
Depois das críticas recebidas e sem argumentos de defesa por parte do governo, ficou evidente a falta de critérios paras os cortes, com a extensão deles a TODAS as universidades públicas brasileiras, denunciando que a ação é contra a universidade como instituição promotora do pensamento livre que horroriza quem prega o sufocamento da livre expressão e a dominação das ideias pela censura, pela força ou, como é o caso, pela supressão de verbas. Na UnB, durante os anos de chumbo, vivi isso na prática, como aluno. O jornal-laboratório “Campus” deixou de circular em alguns semestres porque o então reitor, o capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Azevedo, agente do general-ditador de plantão, cortou a verba de impressão do jornal. Ainda outro dia, antes da eleição do atual capitão à presidência da República, livros de Filosofia, Sociologia, Religião e Direitos Humanos da Biblioteca Central da UnB foram rasgados, cortados, riscados. Alguém aí acredita em coincidência?
Fernando Henrique Cardoso – que não é de esquerda, que é sociólogo e que foi acusado de tentar privatizar a educação, só pra lembrar – também condenou o corte observando que reduzir gastos com Filosofia e Ciências Sociais é um erro até estratégico, “como se por aí se resolvesse o que de fato conta para o povo: renda e emprego”.
Cada ato do atual governo deixa mais clara a intenção autoritária. Pelos corredores do Congresso já se começa a falar de duas possibilidades: 1) configura-se a cada dia o risco de uma ruptura institucional, diante da tentação autoritária; 2) Bolsonaro dificilmente conseguirá concluir seu governo, porque começa a perder apoio até junto às Forças Armadas, onde parecia ter seu mais forte sustentáculo.