César Gandhi, Guilherme Brandão e Walter Brandão *
“Recebo na praça pública, o direito de governar o Maranhão; direito que me foi dado pela vontade soberana do povo. O nosso céu e a nossa terra testemunharam os longos, trabalhosos, ásperos e heroicos caminhos que nos conduziram a essa tarde, a esta solenidade e a este instante. O mandato que venho receber tem a marca da luta, tem a chama da mais autêntica vontade popular, da liberdade de escolher e preferir, da consciência das opções. O Maranhão não suportava mais, nem queria, o contraste de suas terras férteis, de seus vales úmidos, de seus babaçuais ondulantes, de suas fabulosas riquezas potenciais com a miséria, com a angústia, com a fome e o desespero que não levam a lugar nenhum, senão ao estágio em que o homem de carne e osso é o bicho de carne e osso. O Maranhão não quer a desonestidade no governo, a corrupção nas repartições e nos despachos. O Maranhão não quer a violência como instrumento da política para banir direitos os mais sagrados que são os da pessoa humana, com a impunidade dos assassinos garantidos pelos delegados e a liberdade reduzida apenas a uma oportunidade para abastardar os homens”.
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Se havia honestidade em tamanha fala esperançosa, os dias de hoje revelam escaras apodrecidas de quem, há mais de quatro décadas no poder, ainda afasta as terras maranhenses do ideal de uma República efetiva. José Sarney, eleito governador do Estado do Maranhão em 1966, fez lágrimas rasgarem as curvas do rosto para lamberem o chão daquela praça em que o velho caudilho era empossado, prometendo um eldorado em terras brasileiras. Os maranhenses que apostaram naquele triunfo queriam um novo sentido para o cotidiano, diante de uma vida devastada pela pobreza extremada e pela desigualdade.
Passado tanto tempo, o estado com quase sete milhões de habitantes ainda ostenta indicadores sociais calamitosos, com municípios com as menores rendas per capita do país, com presídios em guerra – como o de Pedrinhas –, com fraudes eleitorais (o governador Jackson Lago, ganhador das eleições de 2006, derrubando o clã Sarney, teve seu mandato cassado em 2009, por compra de votos, retornando o governo às mãos de Roseana Sarney).
De acordo com o Mapa da inclusão digital, estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, em 2012, no ranking dos menos conectados ao mundo virtual e a todas as suas potencialidades, encontramos os estados do Norte e Nordeste, sendo o Maranhão o com a menor conectividade: 15,16% da população com computador e 10,98% com acesso à internet.
No período colonial, em razão de dificuldades criadas pelos ventos à navegação entre a costa norte do Brasil e as demais capitanias, em 1621, surgia o estado do Maranhão: grande área que compreendia do Ceará ao Amazonas. A população crescia nessa época, na medida em que as ligações com as regiões vizinhas diminuíam. Com foco nas fazendas de criação de gado, havia pouco espaço para especialização em outros produtos, considerando até mesmo a baixa fertilidade do solo. Esse movimento foi motivo para a presença reduzida do Estado. E daí: coronelismo, cangaço… miséria, miséria. Já na segunda metade do século passado, no processo de industrialização do país, foi esse contingente populacional nordestino que serviu de mão-de-obra no Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.
Nesse contexto nordestino, no exercício de lamber as próprias feridas, por algum acaso do universo, deparei-me com o documentário Luíses – O Solrealismo Maranhense, recém-lançado este ano e gratuitamente disponível em www.solrealismo.com. Drummond dizia que “havemos sempre de amanhecer”. Entretanto, o amanhecer ali mostrado rasga a noite e escancara o sol que ilumina uma realidade que não deveria existir.
As personagens clamam pelo despertar das sombras, a saída da exclusão que aflige o próprio corpo, a voz aprisionada por décadas de uma das últimas oligarquias deste país. Ali se evidenciam: uma comunidade que se chama Vila Que Era, as águas da chuva que carregam os sonhos da Vila Apaco, os Luíses que buscam a ressignificação da vida. Impossível não sair agitado com o ritmo dos tambores de crioula e com a vida que se pretende mostrar ao resto de nós – igualmente brasileiros.
Em Luíses, passando por Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, evidencia-se o apoio das principais lideranças ao regime de Sarney. E o que pensar? Se ao povo não são dadas as condições materiais para pensar e construir uma realidade alternativa à vida na periferia emocional, acostumando-se a imaginar um imperador onisciente, com seu bigode grosso e patente alta, jamais haverá o despertar do sono.
O Solrealismo, muito mais que uma película, constitui-se como movimento cultural que busca, a partir de elementos da própria cultura local e de elementos externos, mostrar as potencialidades de um povo ainda escondido, massacrado, jogado às sombras por um processo histórico de dominação de uma oligarquia política nas engrenagens do Estado. Em Luíses, se quer ver “a serpente acordar, pra nunca mais a cidade dormir”.
Há algum pessimismo no enredo deste post, numa tentativa de buscar mais uma vírgula para continuar a história, mas certo é que outras lendas precisarão ser recriadas para usarmos nosso potencial e ganharmos o mundo. Afinal, nada temos a perder, a não ser as correntes… as que aprisionam seres em postes, mulheres em delegacia de polícia sem infraestrutura adequada e, mesmo, aquelas correntes emocionais, refratárias a mudanças. O solrealismo maranhense cumpre sua missão.
Logo mais estaremos nas urnas buscando dar uma ressignificação ao valor do voto. Uma ressignificação já perdida em tanta corrupção, no desmantelamento da identidade do país – agora recriada em torno da copa do mundo -, na violência da polícia, nos garotos batedores de carteira refigurados como os grandes transgressores da nação – motivos de discursos inflamados de jornalistas imbuídos da verve derrotista de um país com complexo de vira-lata.
Se o voto mudasse algo ele seria proibido, não tenho dúvida. Ainda não sabemos os ventos que ainda virão, mas a enviesada gerontocracia de tantas décadas ainda teima em reinar. A democracia dos que decidem os rumos da nação para o povo, pelo povo, mas SEM o povo.
As ruas e as possibilidades emancipatórias tendem a ser o grande tema de debates. Afinal, as ruas são o palco da demonstração das angústias, das faixas a denunciar um sistema dilacerado. As ruas são o espaço por excelência da vida democrática. Não há outro lugar no emaranhado institucional para tanto. Nas ruas a liberdade abre as asas sobre todos nós: mariposas noturnas que somos já cientes de que não há como voar rumo à lâmpada doméstica, quando há um sol universal a nos esperar.
Mas e o que somos todos nós diante desse quadro? Somos, nós brasileiros, batalhadores e perseguidores de uma justiça social que prega igualdade diante de uma vida escandalosamente desigual; mas que não retrocede diante do caos, ao contrário, avança e grita e vai aos montes e se constitui como grupo, como Luíses do novo sopro democrático.
Se quisermos ser realmente livres, contudo, temos de fazer alguma coisa para mudar essa realidade cinzenta, que esfacela sonhos, que arrocha trabalhadores em ônibus em péssimas condições num trânsito infernal, que recria o outro como algo distante do nós, num submundo de primeiros, segundos e terceiros mundos, isso dentro de um mesmo país – muitas vezes na mesma rua. Essa mudança somente ocorrerá se muitos abraçarem a mesma bandeira e, ombro a ombro, estiverem dispostos a uma revolução; não a das armas, dos horrores, mas a das glórias, aquela em que o povo é ressignificado como fonte soberana do poder e isto não tem tanto a ver com teclas numa urna eletrônica. Afinal, eu também quero ver a serpente acordar, pra nunca mais a cidade dormir!
* César Gandhi, Guilherme Brandão e Walter Brandão são bacharéis em Direito, funcionários públicos e coordenam o projeto Erga Omnes, uma iniciativa de caráter apartidário e voluntário que promove a educação política nas escolas públicas de ensino médio do Distrito Federal.
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